Grávidas têm prioridade, mas “como não é doença, muita gente reclama”

Em lojas, restaurantes e cafés a lei do atendimento prioritário não causou polémica. Mas nos serviços públicos há reclamações. “Há pessoas que até aparecem com crianças ao colo que não são delas.”

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Rita Galantinho acha que as pessoas “estão mais atentas" a quem está atrás de si nas filas Rui Guadêncio
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Paulo Silva considera que a prioridade é "uma questão de bom senso” Rui Guadêncio

“Mas a senhora não tem mais de 65 anos? Então tem prioridade, faça o favor de passar.” Não há dia que a colega de Ana Duarte, na Confeitaria Marquês de Pombal, junto à praça com o mesmo nome, em Lisboa, não diga uma frase parecida. “Ela tem muita atenção a isso e, como sabe que a maioria das pessoas não pede prioridade, ela própria lhes diz”, conta Ana Duarte ao balcão, numa conversa entre muitos lanches para servir.

“Temos uma cliente habitual que está grávida e fazemos questão de a chamar", conta Paulo Silva, funcionário da Pastelaria Herculano. Aqui, a iniciativa parte dos funcionários. São eles que alertam para o direito que grávidas, pessoas com deficiência, ou com crianças pequenas de colo, por exemplo, têm de passar à frente numa fila. A lei que diz que é assim faz nesta sexta-feira um mês.

Mas isto nada tem a ver com a legislação que Paulo Silva nem sabia que estava em vigor. “É uma questão de bom senso”, não é preciso grande cerimónia, adianta. A casa bem enche para almoço, mas a cedência na fila, quando necessária, “é tranquila”. De resto, “a maioria das pessoas não pede para passar à frente". "Acredito que muita gente não saiba.”

Já na farmácia de Rita Galantinho, na rua Braamcamp, também em Lisboa, nota-se que as pessoas estão agora “mais atentas” a quem está atrás de si, enquanto aguardam. “Mas ainda há quem olhe, veja que é uma grávida e disfarce à espera que ninguém repare”, descreve a farmacêutica.

Desde 27 de Dezembro, têm direito a ser atendidas em primeiro lugar as pessoas com deficiência, grávidas, pessoas com crianças de colo e idosos com “evidente” limitação das suas funções físicas ou mentais. É assim quer nas entidades públicas (onde essa obrigação já existia), quer nas privadas (a grande novidade que a nova legislação do atendimento prioritário trouxe). Ter 65 ou mais anos não é, por isso, um facto que permita, logo à partida, um lugar cimeiro no atendimento. A legislação específica ainda: apenas quem leva ao colo crianças até aos dois anos de idade pode passar à frente.

“É uma questão de bom senso” é uma das respostas que o PÚBLICO mais ouviu nos cafés, restaurantes e lojas de Lisboa. Mas o “bom senso não é algo transversal”, reconheceu a secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, quando o decreto-lei foi aprovado. Ana Duarte concorda: “O português só vai lá com a lei. Se não for a ameaça de uma multa, é egoísta.”

O Instituto Nacional para a Reabilitação, que entre as suas missões tem o combate à discriminação e a valorização das pessoas com deficiência, recebeu no último mês 169 pedidos de informação (nomeadamente sobre forma de fazer valer o direito junto dos serviços) e quatro reclamações, das quais apenas uma seguiu para processo contraordenacional junto da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. Note-se, contudo, que esta é apenas uma das entidades a quem é possível apresentar queixa relativa ao incumprimento da nova lei. Tratando-se de uma infracção num estabelecimento de restauração, por exemplo, a entidade indicada é a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, que já ao fim da noite informou que "no último mês, foram recebidas três denúncias relativas à obrigatoriedade do atendimento prioritário das pessoas com deficiência ou incapacidade, pessoas idosas, grávidas ou pessoas acompanhadas de crianças de colo a todas a entidades do sector público ou do sector privado", encontrando-se as mesmas em fase de averiguação.

É pior com as grávidas

Enquanto passa os códigos de barras na caixa de um supermercado na Penha de França, Filomena Brito expõe uma realidade diferente da observada por quem trabalha em cafés e restaurantes: “Aqui as pessoas exercem muito o seu direito. Não exigem prioridade perante o funcionário, mas aos clientes que estão na fila. E muitas pessoas não querem deixar passar.” Têm pressa.

É pior com as grávidas: “Como não é uma doença, há muita gente a reclamar.” Claro que também existe o outro lado da moeda: “Algumas pessoas dizem que estão grávidas e não estão, só para passar à frente.”

“E se eu quiser também pego numa bengala e leva-a para as compras”, ironiza Leonor Relvas. Nada disto é novo para esta funcionária da repartição de finanças daquela freguesia lisboeta. Já chegou a pedir o boletim de saúde das grávidas para confirmar a história. “As pessoas aqui exercem o seu direito até demais. Aparece muita gente com mais de 65 anos com perfeita capacidade física a pedir para passar à frente.” Ao ponto de já ter perguntado a idade a todos os que esperavam na sala de espera, para organizar prioridades. “Claro que depende dos sítios. Podem esperar à porta do restaurante, mas nas finanças já têm que ter prioridade”, desabafa.

Nesta repartição “há pessoas que até aparecem com crianças de colo que não são delas”, só para passarem à frente. Vários utentes apresentaram queixa no último mês contra o sistema de prioridade, que também não reúne apoio do outro lado do balcão.

Rui Leitão, funcionário na mesma repartição de finanças, vira-se para o cartaz com o esquema de prioridades, que está colocado na parede ao lado da sua secretária, e reclama com esta lei que lhe coloca “um peso morto sobre o ombros”. “Como é que vou avaliar as pessoas? Então a nível mental, quem sou eu para avaliar seja quem for?”, questiona, referindo-se à prioridade dos idosos, dada apenas perante situações de “evidente alteração ou limitação das funções físicas ou mentais.”

Leonor Relvas, há 32 anos no atendimento ao público, queixa-se que a lei deixa “muito espaço para interpretações” e coloca nos “funcionários a responsabilidade de avaliar as pessoas”. Se o utente reclamar, arriscam uma multa que pode ir de 50 a 500 euros ou de 100 a mil, consoante a entidade infractora seja pessoa singular ou colectiva.

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