Interesses divergentes da Alemanha e Itália colocam dilema ao BCE

O BCE, já se sabe, não consegue agradar a todos os países ao mesmo tempo. Essa incapacidade vai ser sujeita a um teste quando a inflação superar os 2% na Alemanha.

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Mario Draghi tem permanecido imune às pressões alemãs para começar a retirar os estímulos à economia da zona euro REUTERS/Ralph Orlowski

E se de repente, no país onde as subidas de preços são mais temidas, a inflação superar a barreira dos 2% e o banco central decidir não fazer nada para o contrariar? Este cenário, que à partida pareceria apenas um exercício hipotético para algum tipo de estudo económico, está longe de ser fruto da imaginação. E o mais provável mesmo é que, dentro de poucos meses, seja a realidade dentro da zona euro, testando a capacidade da Alemanha para suportar uma política monetária que não é a que mais deseja e tornando ainda mais complexos os dilemas que o Banco Central Europeu (BCE) enfrenta na actual conjuntura da zona euro.

A Alemanha registou em Dezembro uma inflação homóloga de 1,7% e a generalidade das previsões aponta para que este indicador continue a subir até ao final do primeiro semestre. É considerado quase certo que, nos próximos meses, a inflação alemã fique confortavelmente acima do objectivo de “abaixo mas próximo de 2%” definido pelo BCE para a totalidade da zona euro.

Existem poucas dúvidas em relação ao que será a reacção da opinião pública alemã a um cenário deste tipo. A memória da hiperinflação dos anos 30 do século passado na República de Weimar e o custo que as taxas de juro muito baixas têm para um país de aforradores são duas das principais explicações para a maior parte dos alemães encare com muita apreensão o regresso da subida de preços.

Quando os últimos dados da inflação foram divulgados, já se ficou com uma pequena amostra do que podem ser as mensagens dirigidas ao BCE provenientes da Alemanha. O ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, foi dos mais cautelosos na hora de dar conselhos a Mario Draghi, mas ainda assim afirmou que “seria provavelmente correcto se o BCE começasse a dirigir-se para a saída [das políticas expansionistas] este ano”.

O presidente do Ifo, um instituto que serve de referência para o pensamento de muitos economistas e políticos alemães, foi mais longe, pedindo que o BCE recuasse em medidas com as taxas de juro nulas e o programa de compra de dívida já nos próximos meses.

E no jornal mais lido do país, o Bild, a mensagem foi ainda mais directa. “Subam as taxas de juro já!”, escreveu-se num editorial que defendia que “as pessoas estão a ver uma desvalorização líquida das suas poupanças enquanto os governos dos países do euro continuam a endividar-se com custos historicamente baixos”.

Do lado do BCE, Mario Draghi tem garantido que é imune às pressões provenientes de qualquer país específico, que a sua política é para o total da zona euro (onde a inflação está a 1,1%) e que a subida dos preços pode ser temporária porque se deve sobretudo ao que se passa nos produtos energéticos. No final, não deixou as críticas que vinham da Alemanha sem resposta: “tenham paciência”, disse.

No entanto, a complexidade da situação na zona euro, onde algumas das principais economias passam por conjunturas económicas e financeiras muito diversas, constitui mais um desafio muito difícil para a entidade liderada por Mario Draghi.

Embora seja claro que o mandato do BCE é unicamente o de definir a política adequada para o total da zona euro, desde o início do projecto do euro que uma das fragilidades apontadas era a dificuldade que um banco central comum teria em acertar com uma taxa de juro que fosse a mais desejável para todos os países da zona euro e que pudesse evitar o surgimento de crises em algumas zonas da união.

O que diz a regra de Taylor?

Esta dificuldade é normalmente visível quando se aplica a regra de Taylor aos diversos países da zona euro. A regra de Taylor é a mais utilizada pelos economistas para medir qual a taxa de juro ideal para um país, tendo em conta o nível de desemprego face ao nível de desemprego de equilíbrio e o nível de inflação.

De acordo com os cálculos do economista do think tank Bruegel, Zsolt Darvas, agora actualizados a pedido do PÚBLICO, a regra de Taylor apontaria para que a taxa de juro ideal no total da zona euro seria de 1,3%, mas que na Alemanha seria de 3,4% e que na Itália seria de -1% e em Espanha de -1,4%.

No caso de Portugal, o facto de o país ter neste momento um nível de desemprego de equilíbrio (aquele que se atinge quando a economia está no seu potencial) elevado e já acima do registado na realidade, faz com que a regra de Taylor aponte para uma taxa de juro de 2,9%, um valor bem próximo da Alemanha. O seu elevado nível de endividamento e a pressão a que se assiste no mercado da dívida pública, contudo, torna certamente o país num dos mais vulneráveis a uma eventual subida de taxas por parte do BCE.

Apesar da divergência entre as "taxas de juro ideais" até ser menor agora do que era no auge da crise, em 2012, para o BCE a verdade é que o dilema que enfrenta é ainda bem mais complexo do que aquilo que mostra a regra de Taylor. É que os países que “pedem” taxas de juro mais baixas são exactamente aqueles que nos mercados têm mais dificuldades em beneficiar das actuais taxas de juro zero do BCE.

Isto é especialmente verdade, não só para Portugal (que apenas consegue financiar-se a dez anos a uma taxa de 4%), como para grandes economias como a Itália ou a Espanha, que têm taxas de juro a 10 anos próximas de 1,4%, contra os cerca de 0,1% da Alemanha.

Perante isto, o que fará o italiano Mario Draghi em Frankfurt? Continuar a testar a paciência alemã, prolongando ao limite a sua política expansionista, ou começar a retirar as suas medidas, arriscando o surgimento de crises financeiras em países como a Itália ou Portugal?

As decisões difíceis terão de começar a ser tomadas já nos próximos meses, no meio de um calendário eleitoral bastante preenchido em toda a zona euro e numa altura em que se tenta debater uma reforma das regras da zona euro em várias capitais.

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