Pessoa e matemática na dança impossível de Tânia Carvalho

Antes de estrear um novo solo no GUIdance, Tânia Carvalho apresenta no Teatro Maria Matos, em Lisboa, Glimpse – 5 Room Puzzle. Peça em que Fernando Pessoa se encontra com problemas matemáticos.

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Os bailarinos, Luís Guerra e Marta Cerqueira, de preto no cenário branco Rui Palma
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Os bailarinos, Luís Guerra e Marta Cerqueira, de preto no cenário branco Rui Palma
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Os bailarinos, Luís Guerra e Marta Cerqueira, de preto no cenário branco Rui Palma

Tânia Carvalho queria fazer desenhos com os corpos. Tão simples quanto isto. E foi a desenhar que começou a lançar as primeiras bases para Glimpse – 5 Room Puzzle. Os bailarinos, Luís Guerra e Marta Cerqueira, vestem-se de preto sobre um cenário branco – como figuras rabiscadas numa folha de papel. Seguindo o seu processo habitual, a coreógrafa foi imaginando mentalmente a forma como os corpos se encontrariam no palco, ao mesmo tempo que experimentava com os desenhos. À medida que coleccionava movimentos, estes revelavam-se não mais do que acumulações de gestos abstractos – “quando já se trabalha há tanto tempo o movimento já não se precisa das palavras ou de se justificar, os movimentos são aquilo com que se trabalha”, diz ao PÚBLICO.

Essa abstracção foi-se depois diluindo quando Tânia iniciou o trabalho com Luís e Marta. Os movimentos já não aconteciam apenas em dois corpos que se moviam na sua cabeça, passavam a ter como veículos dois seres concretos, de carne e osso, que investiam de uma outra densidade cada sequência – por mais fria e matemática que pudesse ser a sua origem. “Sendo pessoas que estão ali no palco, começo a ver relações entre elas e é aí que surgem normalmente as ideias mais emocionais das peças”, revela.

Chegada a este ponto, as ideias começam a atropelar-se, a exigir um lugar na criação e sempre encontram forma de se colar à matéria coreográfica. Tudo tem lugar: do poema Soneto I, de Fernando Pessoa, ao problema matemático conhecido como "5 room puzzle" – a ideia de que com uma linha contínua se possa atravessar (sem repetir) todas as paredes de um rectângulo repartido por cinco divisões. A cada uma destas referências Tânia Carvalho vai buscar uma parte do título da obra que levará ao palco do Teatro Maria Matos, em Lisboa, entre esta quinta-feira e o próximo sábado, 28 de Janeiro, depois de ter passado ainda este mês pelo Centro Pompidou, em Paris – onde tinha já mostrado a anterior Tecedura do Caos, uma encomenda da Bienal da Dança de Lyon, exemplos de uma fulgurante presença internacional nos últimos anos.

As palavras de Pessoa ressoaram em si quando percebeu que se encontrava a trabalhar sobre a imagem de “duas pessoas que estão a tentar fazer uma coreografia juntas, mas nunca encontram uma solução perfeita”. “A alma intransponível / não há pensar ou arte que o desfaça” escreve o poeta. Tânia pega nessa impossibilidade de desvendar plenamente o outro para tentar jogar com a ideia “de só conhecermos um pouco das pessoas, de sermos vislumbres uns dos outros”. “Quando estava a ver os ensaios, bateu certo com o que tinha pensado antes, porque ao ver o dueto encontro duas pessoas que tentam dançar juntas mas não encontram uma forma satisfatória –estão isolados no próprio movimento, não vêem o outro.”

A relação com o 5 room puzzle surgiu-lhe depois de ter passado uma tarde a tentar solucionar um problema que sabia, à partida, ser insolúvel. “Isso fez-me pensar que somos muito tolos”, ri-se. “Já sabia que era impossível de resolver mas ali estava eu a tentar na mesma, e perguntei-me por que razão me achava tão especial que se calhar até ia conseguir. Lembrei-me do puzzle porque estou a dirigi-los tentando sempre a melhor forma, nunca desistindo de que eles façam as frases.” Sabendo, em cada instante, que os corpos dos bailarinos estão fadados ao falhanço conjunto.

A coreógrafa refere-se repetidamente a Glimpse como um dueto. Mas, na verdade, é um falso dueto, uma vez que ela própria se encontra em palco e desempenha aquilo a que chama “o ponto de fuga da peça”. A sua personagem foi-se desenhando como um contraponto ao tom “muito esquemático e repetitivo” dos dois bailarinos no centro do palco, assumindo um lugar mais onírico, mas também de inquietação. De certa forma, é alguém que assiste ao dueto e que funciona como possível mediador entre público e intérpretes.

Depois do Maria Matos, Tânia Carvalho apresenta-se em função dupla no GUIdance – Festival Internacional de Dança Contemporânea de Guimarães: com o solo Captado pela Intuição, em estreia absoluta, a 4 de Fevereiro, numa luta consigo própria para assumir a abstracção mas que acaba por ser traída pelo corpo, atacando-se a si própria; e com a remontagem de De Mim Não Posso Fugir, Paciência, peça de 2008, a 8 de Fevereiro.

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