Na biblioteca adormecida de Fernanda Fragateiro

Numa exposição em que se convocam a materialidade do livro e a leveza da escultura, Fernanda Fragateira propõe ao espectador que deambule pelo espaço, despertando sentidos latentes e redescobrindo objectos e histórias escondidas. Encontro com a beleza das formas, no Fórum Eugénio de Almeida, Évora.

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Assim que entra, o espectador confronta-se com os cubos de mármore espalhados no chão. Se tiver curiosidade, descobrirá em cada cubo uma secção da Enciclopédia Luso-Brasileira da Cultura
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António Jorge Silva

A Reserva das Coisas no Seu Estado Latente, de Fernando Fragateiro, solicita silêncio ao espectador. Silêncio para lidar com o visível e o invisível, os materiais e as formas, os textos e os objectos. Nas salas do Fórum Eugénio de Almeida, em Évora, o espectador vê cubos de mármore branco, livros suspensos na parede, blocos de revistas cortadas, um laboratório de materiais. São coisas que, como indica o título, se encontram num estado latente, adormecido, aguardando a activação que o olhar permite, conduzido pelo desejo de conhecimento ou a distracção da curiosidade. Mas o que activa de facto? Tente-se responder: narrativas esquecidas ou periféricas do modernismo, referências literárias, significados que podemos associar ao livro. A arquitectura, a literatura, a arte e os artistas aparecem e desaparecem sob o fazer de Fernanda Fragateiro.

Tome-se como exemplo (Não) Ler Maurice Blanchot, conjunto de desenhos realizados com um corte preciso de livros, através do texto, seis milímetros entre cada linha. As palavras emudecem para, sobre o papel, revelarem desenhos. Ou vejam-se as esculturas Elevation Study (Domus Magazine), compostas de edições da revista de arquitectura Domus (publicados nos anos 89 e 90 do século XX), cortados em blocos. Impedido o acesso aos textos, à informação, o que fica é a presença física do papel, um volume de superfícies, uma relação com a parede. Das questões e posições que, numa dada época, construíram o debate em torno da arquitectura e do design, somos transportados, temporariamente, ao espaço de uma interpelação dirigida à percepção no espaço e da obra.

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Alquimia

“A Fernanda Fragateiro é uma artista que sobrepõe elementos, ideias e materiais”, considera Adam Budak, comissário da exposição e Director da Galeria Nacional de Praga, República Chega. “Esse é um dos seus métodos de trabalho. Está sempre a mudar, a transformar as coisas e de um modo que considero alquímico. Há uma alquimia do sentido e da matéria no seu trabalho. E no centro de tudo isso encontramos o livro”. O livro surge, na exposição, associado ao pensamento de Maurice Blanchot (1907-2003), autor que acompanha a artista desde os anos 90. “Tenho trabalhado muito sobre a arquitectura e o livro e, nesse sentido, [Blanchot] tem sido uma referência muito importante para mim”, revela Fernanda Fragateiro. “Mas leio-o de uma forma muito física, sinto muito a materialidade das referências que ele faz ao espaço. No caso do livro, há uma imaterialidade que transformo em materialidade, e, em termos de arquitectura uma referência à ideia de edifício. Disseram-me que há peças nesta exposição que podem ser pensadas como edifícios, eu concordo”.

O olhar do comissário sobre Blanchot pode ser considerado mais literário, centrado noutras questões que não o espaço. “Na definição de Blanchot, o livro é uma totalidade. Há a presença de um conteúdo, de uma forma, de um sistema de conexões entre a forma e o conteúdo. E isso é algo próximo do trabalho da Fernanda Fragateiro, que é enfatizar, tornar visível um sistema de conexões. Ela é tanto uma bibliotecária como uma arqueóloga, ao retrabalhar o repositório de conhecimento que é o próprio livro”.

Assim que entra, o espectador confronta-se com os cubos de mármore espalhados, sem ordem aparente, no chão. Desvia-se, interrompe o caminho, para não tropeçar ou embater nos volumes. Está diante de uma instalação e, se tiver curiosidade, descobrirá em cada cubo uma secção da Enciclopédia Luso-Brasileira da Cultura (publicada pela Editorial Verbo entre 1963 e 1986). Como em (Não) Ler Maurice Blanchot, o espectador não tem acesso ao texto, ao contéudo. “A precisão matemática e construção de estruturas rigidamente compostas são aspectos que estão muitos presentes no trabalho”, comenta o comissário, “mas encontramos também a ideia do conhecimento comprimido, escondido. Encontra-se lá, mas na sua latência. Temos de participar para o tornar vivo, legível, acessível. Esse é um aspecto intrigante. Nem tudo é dado e, para reaparecer, tem que ser acordado, activado”.

Dito de outro modo, o espectador deve (também) atravessar a exposição, entrar nas salas, ver as ligações que elas anunciam. Laboratório de Materiais 3 revela-se, para essa finalidade, muito eloquente. Consiste num conjunto de mesas sobre as quais estão dispostas caixas de madeira. No interior de cada caixa, revelam-se os materiais, os objectos, as imagens que instigaram e asseguraram os processos de trabalho. Numa, descobre-se por exemplo que a instalação com os cubos de mármore (cujo título é “Blocos de Construção, 5”) é inspirada numa fotografia de um motim em 1974, na então República Federal da Alemanha, contra o aumento dos preços dos transportes públicos.

Elevar contra o peso do mundo

A decisão de mostrar os processos e os materiais em contexto expositivo surgiu há dois anos quando Fernanda Fragateiro foi convidada a conversar sobre a pesquisa artística no Museu de Harvard, nos Estados Unidos. “Queria explicar aos estudantes de arte como faço o meu trabalho, como uma obra de arte nasce. Tentei fazer isso de forma intuitiva e no fim interroguei-me se devia tornar esse processo também uma obra. Percebei que tinha proporcionado uma janela às pessoas, e no fim disse que sim. Em cada exposição, desde 2015, tenho trazido o estúdio comigo para que os espectadores possam ver os materiais, as fontes, os arquivos”.

Privilegiando questões conceptuais ou assumindo um diálogo com a experiência da obra artística e o vocabulário do minimalismo, A Reserva das Coisas no Seu Estado Latente não deixa de evocar a possibilidade de uma crítica social, despertando ecos de utopias, promessas, expectativas. Veja-se em Não Paisagem, uma apropriação de uma capa da revista Casabella, publicação icónica da arquitectura italiana, que recorda ao público as ideias do colectivo ecológico Haus-Rucker-Co, ou o tributo consagrado a artistas que as narrativas dominantes do modernismo têm a tentação de esquecer. É como se a alquimia da artista portuguesa resgatasse da história Otti Berger, designer e professora da Bauhaus (morta em Auschwitz em 1944), numa replicação da peça Christmas and New Year´s Card, e Lilly Reich, amante e companheira de Mies van der Rohe, com Dupla Cadeira Reclinável (a partir de MvdR). São dois momentos ímpares na exposição, pelo modo como estabelecem ligações com as biografias e as obras e desafiam o espectador a combater o esquecimento.

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Lembrar e cuidar, eis dois verbos que dão significado à atitude da artista face à história da arte. E tal atitude não se incompatibiliza com a beleza que se manifesta nas obras. Na verdade, envolve-a e fá-la nascer. Destacando a horizontalidade do espaço, em Dupla Cadeira Reclinável (a partir de MvdR) e em Landsacpe and Power, instalação que explora a dimensão escultural dos livros. Ou sublinhando a relação entre peso e leveza na sequência musical das formas, em blocos de mármore branco, de Poema Concreto 2. “Ao retirar as esculturas do chão atinjo essa sensação de leveza”, concorda Fragateiro. “E aí há a influência do [escritor e ensaísta italiano] Italo Calvino quando propõe, em Seis propostas para o Próximo Milénio (1988), a leveza contra o peso do mundo. As enciclopédias, os livros que condensam tanta história carregam um peso que procuro elevar, suspender. É uma forma de combater esse peso”.

Desaparecimento e aparecimento, fechamento e abertura, esquecimento e memória. A Reserva das Coisas no Seu Estado Latente mostra-se nos intervalos destas dicotomias como uma biblioteca adormecida, cujo silêncio só a voz de Nina Simone é autorizada a quebrar. Escutamo-la discreta, a escapar de uma rádio na sala de Laboratório de Materiais 3. “Conversei com o Adam [Budak] sobre a inclusão da música”, explica. “Comentámos que muitos artistas têm o hábito de escutar música de fundo enquanto trabalham nos seus estúdios. Eu andava a ouvir muito a Nina Simone, uma das minhas cantoras favoritas e aquele dia era especial. Era o dia da Marcha das Mulheres depois da eleição do Donald Trump. Esta exposição também lida com narrativas, com vozes ausentes. Aborda com subtileza questões políticas e a presença de uma voz de uma mulher negra pareceu-me suficientemente simbólica para a trazer à exposição”.

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