Presidenciais: "Nenhum capítulo está encerrado na vida"

Sampaio da Nóvoa faz uma “auto-crítica”, lamenta a falta de ideias para o país, e deixa aberta a hipótese de um regresso.

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Um ano depois das eleições, Sampaio da Nóvoa deixa em aberto uma hipótese de regresso Enric Vives-Rubio

O antigo reitor explica por que não usou o resultado das presidenciais para lançar um movimento político: “Seria um erro.” Lembra que a sua campanha “foi o primeiro momento político significativo” em que se defendeu o fim do “arco da governação”. E deixa um aviso a António Costa: “Vejo coisas muito importantes que foram feitas este ano, com as quais me identifico totalmente, mas não vejo um discurso sobre o projecto para o país.”

Manteve um ano de afastamento rigoroso. Por que decidiu não falar desde as eleições?
Decidi assim, e cumpri rigorosamente, porque a minha candidatura foi feita em nome de valores e princípios. Estiveram pessoas de todos os partidos na minha candidatura, é claro que mais de uns do que de outros, mas não seria legítimo da minha parte usar os votos que me deram para depois tentar fazer alguma coisa que não respeitasse isso.

Havia na sua base de apoio quem desejasse a formação de um movimento político?
Havia. Quando se tem uma votação tão expressiva, 23 %... Bom [risos], é uma derrota. Não há vitórias morais em processos eleitorais. É uma derrota mas é uma votação expressiva, é a mais alta percentagem jamais obtida por um candidato independente à Presidência no nosso país. Isso leva sempre à manifestação desse tipo de vontades. Mas seria um erro.

Porquê?
O respeito pelos partidos e pela democracia representativa é matricial em tudo o que penso. Mas essa democracia representativa precisa de ser aumentada através da dinâmica de participação que não se faz só entrando no jogo partidário, faz-se de outras maneiras. É esse enriquecimento que procurei, de algum modo, trazer com a minha candidatura. De outro modo iria destruir, ou anular, o que quis trazer.

Não foi assediado pela política? Ninguém o tentou convencer?
Muita gente me dizia que a política vicia, no bom sentido da palavra. Esta espécie de frenesim, de agitação, de uma certa adrenalina. Não senti isso. Pelo contrário. É evidente que surgiram convites, propostas. Mas isso nunca esteve verdadeiramente no meu horizonte. Seria aos meus olhos incompreensível estar a aceitar coisas porque tinha sido candidato e tinha tido 23% dos votos. A minha vida é outra. Tudo o que fiz na vida foi ou por concurso público, ou por eleição. E assim será. Essas conversas eu acabei com elas muito rapidamente.

Marques Mendes chegou a anunciar que iria para um cargo internacional.
Nunca fui convidado, não recebi qualquer convite. Não sei sequer do que tratava esse assunto. Já tive a oportunidade de dizer isso ao doutor Marques Mendes, infelizmente numa ocasião triste, no funeral de Mário Soares.

Durante a campanha, uma das frases de Marcelo que mais o fez reagir foi aquela de que seria um soldado raso a querer chegar a general. O seu último ano foi um regresso a soldado raso?
Para mim não é. Na democracia não há soldados rasos. Todos temos o direito e o dever de sermos cidadãos. Essa observação esteve na cabeça de muita gente, não só de Marcelo Rebelo de Sousa mas de outros candidatos, e de um núcleo político e jornalístico que se movimenta à volta da política. O que me levou à candidatura foi não ter esses galões, foi ter feito uma vida noutros lugares.

O que foi mais difícil na campanha, foi essa acusação de que seria inexperiente para o cargo, ou o facto de o seu adversário não se deixar encurralar numa imagem muito nítida que pudesse contrariar?
A campanha de Marcelo foi uma espécie de não-campanha, e isso torna muito difícil discutir argumentos. Isso foi possível graças à popularidade que Marcelo tinha granjeado, merecidamente, na sociedade portuguesa ao longo de muitos anos. Era muito difícil entrar num debate político. Do meu lado houve em muitos momentos zonas de hesitação entre ser uma candidatura que não era dos partidos, nem contra os partidos. Essa foi uma gestão difícil de fazer, nomeadamente com o PS.

Está a falar da forma como lidou com o apoio do PS, que acabou por não existir?
É uma auto-crítica que estou a fazer. Houve momentos de hesitação sobre isso. Genuinamente, queria fazer uma candidatura independente, mas que nunca escorregasse para o discurso populista contra os partidos. O que percebo hoje é que se pode fazer uma candidatura independente se a pessoa se deixar escorregar por essa via. Mas mantendo-se fiel ao respeito pelos partidos, a candidatura independente torna-se difícil.  Mas na verdade, do ponto de vista estritamente eleitoral, nós atingimos aquilo a que nos tínhamos proposto. Tínhamos como referência a eleição de 1986 que era, em muitos aspectos, parecida com esta - uma candidatura fixa à direita, várias à esquerda. Tínhamos esse objectivo. Chegar perto do resultado de Mário Soares na primeira volta, acreditando que se o conseguíssemos iriamos ter segunda volta. Estávamos absolutamente convencidos de que iria haver segunda volta.

Até ao último dia?
Até à última hora, até às oito horas da noite de domingo, estávamos todos convencidos de que haveria segunda volta.

Por que não houve, consegue explicar?
A razão principal foi a descida abrupta da candidatura de Maria de Belém. Teve 4%, não conseguiu fixar o eleitorado mais centrista do PS, e isso destruiu qualquer possibilidade de uma segunda volta.

A sua campanha foi sobretudo centrada numa crítica a Marcelo Rebelo de Sousa: a relação de um Presidente de direita com a nova maioria de esquerda no Parlamento. Acha que as coisas se estão a pensar como pensava?
A campanha que fizemos, ainda que pouca gente o diga, é o primeiro momento político significativo em Portugal em que se defende um tempo novo e o fim do arco da governação. Era um conceito que, há dois anos, ouvíamos falar todos os dias e de há um ano para cá desapareceu, nunca mais ninguém falou nele. Não estou a dizer que fui a primeira pessoa a falar disso, não fui, houve outros antes de mim, como o Rui Tavares.

Sente alguma tristeza por esse esquecimento?
Vivo isso com muita naturalidade, porque em política o esquecimento também é importante. Mas durante meses e meses andei a pregar sozinho que os votos contam todos por igual, tanto os do PCP e do BE como os do CDS.

Começou a sua campanha em Abril de 2015, quando a "geringonça" ainda nem sequer era uma hipótese remota...
Exactamente. Todas as entrevistas que dei nessa altura eram criticadas, as pessoas chamavam-me ingénuo.

E isso acabou por jogar contra si?
Não sei, não estou seguro. O que acabou por jogar contra a candidatura, além das minha próprias fragilidades que não conseguiram gerar uma dinâmica forte e levaram à fragmentação da esquerda, foram as características de Marcelo Rebelo de Sousa - muito popular, com uma grande familiaridade com os media e com uma grande capacidade de falar com as pessoas.

E agora, acredita que o Presidente tem uma estratégia para assegurar que o PS não vai contestar a sua reeleição?
Julgo que não. Marcelo não precisa disso. Com o peso que tem na sociedade portuguesa, o papel que adquiriu, será reeleito facilmente, se assim o desejar.

Mesmo que se indisponha com o eleitorado de esquerda?
Faltam muitos anos. Não vejo aqui qualquer tipo de calculismo.

Disse na noite das eleições que Marcelo seria o seu Presidente. Em que é que foi mais, e menos, o seu Presidente?
No que foi mais foi na dimensão da estabilidade, em ter feito tudo para assegurar a estabilidade política. Dentro e fora do país. Do mesmo modo, pela maneira como exerce esta actividade em grande proximidade com as pessoas. Para mim, uma das coisas que mais me perturbava numa certa fase do mandato de Cavaco Silva é que ele estava sempre protegido das pessoas, havia sempre um cordão à volta dele, que o isolava das pessoas. Assisti a vários momentos desses e era uma coisa que me incomodava imenso. Um Presidente que precisa de ser protegido das pessoas é uma coisa, para mim, impensável. Os dois aspectos onde acho que é preciso introduzir alguma correcção é na ideia de equidistância, de não haver uma colagem excessiva a qualquer solução de governo.

Acredita que Marcelo quer agir para mudar a liderança de Pedro Passos Coelho no PSD?
Não tenho opinião sobre isso. Não tenho informação suficiente. Creio que é uma forma de estar, fazer tudo para assegurar a estabilidade. O problema para mim é sempre o mesmo: alguns sectores podem estar contentes com isso - e o Governo não pode deixar de estar contente - mas o problema é que se nós aceitamos que o pêndulo vá para um lado também temos de aceitar que o pêndulo vá para o outro. E não podemos depois criticar quando a colagem se faz no extremo oposto. É melhor manter a equidistância desde o princípio e não ceder nessa matéria.

Qual das falhas que aponta a Marcelo vai ser mais importante para o futuro?
A sua pergunta reside num pressuposto que partilho: apesar da avaliação positiva que faço da actuação presidencial, ao fim de um ano não sai muito clara uma visão estabilizada do conceito do Presidente. Há uma vontade, um desejo, de marcar diariamente a agenda política que, a meu ver, não é função do Presidente. Nunca se viu, a não ser em pequenos detalhes, alguma crise entre o Governo e os partidos que o suportam. Quando recomendo alguma prudência não é na agenda diária junto das pessoas. Essa é muito importante e, só por si, é construtora de uma ideia de proximidade e de confiança nos políticos e nas instituições.

Acha que isso ajuda a explicar a excepcionalidade portuguesa nesta maré de partidos populistas na Europa?
Acho que sim. Tem sido, e ainda bem. Mas o Expresso neste fim de semana recordava que Cavaco Silva, no final dos seus primeiros 10 meses de mandato, tinha mais popularidade que o Presidente actual. Temos uma grande tendência para esquecer, ou recordar certas coisas...

O facto de esta ser uma Presidência muito próxima dos cidadãos, até do ponto de vista icónico, com fotografias do Presidente a abraçar um sem-abrigo, limita o campo dos discursos anti-política?
Acho que sim. Dá um sinal de empatia, de generosidade, de compromisso com as pessoas. O Presidente tem sido irrepreensível nesse aspecto.

A proximidade era também um dos temas da sua candidatura...
Era até um dos slogans: "Um Presidente próximo". Na altura Marcelo falava dos afectos, o que não é exactamente a mesma coisa. Marcelo está a conseguir fazê-lo, de uma forma que nenhuma outra pessoa conseguiria, pelas suas características pessoais. Mas a proximidade que eu referia não se esgotava nesse aspecto. Falava da proximidade da decisão, da descentralização. E sobre essa matéria, o sistema político português voltou a ficar muito rígido. Os debates que existiam, de abertura a independentes, de primárias, a necessidade de trazer os cidadãos para a política, tudo isso parece que de repente desapareceu do debate. O sistema político revelou-se muito sólido, os cinco partidos centrais mostram-se muito seguros, e isso trouxe para segundo plano algo que eu não gostaria que ficasse em segundo plano: a qualidade da democracia.

O que mudou?
Esse debate já foi mais activo, em Portugal, do que é hoje. Há dois anos falava-se mais da qualidade da participação.

Não olha para a Europa actual, a partir de Portugal com a tranquilidade de estar num "oásis de sanidade" como disse há pouco tempo José Gil?
[Risos] A Europa está numa situação como nunca viveu na História. É uma Europa enfraquecida. É fácil dar o exemplo do brexit, é o mais evidente, mas não é só isso: não tem ideias. Nesta situação não se vê um pingo de uma ideia sobre a Europa. São os mesmos discursos de sempre dos eurocratas sobre as dívidas, sem uma única ideia de refundação da Europa. É desesperante.

Não sei se se considera um optimista, mas acredita que Trump pode ser uma vacina para a Europa?
Posso estar a cometer um erro primário, mas não antevejo qualquer perigo substantivo de extremismos na Europa. Claro que Marine Le Pen é o que é, que conhecemos os movimentos na Holanda e na Áustria. Não vejo nenhuma possibilidade de uma vitória de Le Pen na França. Julgo que a Europa não vai seguir esse rumo. Mas antevejo um enfraquecimento progressivo, um arrastar, e há um momento em que isto se pode transformar numa situação complicada. Estamos numa situação de estagnação preocupante. O único estadista que existe na Europa é a senhora Merkel. Mas também não temos pensadores. Não é só um problema da política. Há uma falta de renovação intelectual. Há uma repetição das mesmas ideias, das mesmas dicotomias, das mesmas ideologias. Há uma incapacidade de encontrar outros caminhos. Será que isto está relacionado com o pensamento-twitter, em que tudo o que temos para pensar se tem de exprimir em 140 caracteres? Um dia destes vamos fazer política por emoticons? O empobrecimento nota-se muito no comentário político. É baseado na ridicularização das coisas. Há uma ridicularização permanente de tudo. Nisso os comentadores são excepcionais.

Acha que isso é uma forma de criar uma distância com a realidade, uma forma de sarcasmo por defeito?
É uma ausência de pensamento. Tudo se arrasa, brilhantemente, mas o que é que sai dali? Nada... Parece que algumas pessoas acham que isto é tudo too big to think, como se dizia dos bancos, que eram too big to fail. Já não vale a pena pensar, as coisas são tão grandes que não conseguimos pensar. Ficamos pela ridicularia...

É a vitória da assertividade sobre a curiosidade?
Hoje ninguém consegue pensar o futuro. Quem vier propor um debate sobre o futuro morreu... É um idealista, um utópico, um ingénuo. Esse é um dos problemas de Portugal. Estamos muito contentes com a estabilidade política, e eu também, mas é preciso que isto tenha um horizonte de futuro...

E não o vê?
Vejo muito pouco. Vejo coisas muito importantes que foram feitas este ano, com as quais me identifico totalmente, mas não vejo um discurso sobre o projecto para o país. Aí está uma área para o Presidente intervir. Em vez de viver nesta ditadura do instante, ser capaz de mobilizar as forças para pensar o futuro. A culpa não é só dos políticos. Os políticos emergem da sociedade, da universidade, da cultura.

Vê-se a regressar a uma campanha?
Vejo. A resposta é muito fácil. Estou no lugar onde sempre estive.

É professor universitário...
Sou professor, investigador, sempre trabalhei em Portugal e no estrangeiro, continuo a fazer a mesma coisa. Mas sempre tive, desde miúdo, uma grande dimensão de intervenção política. Nunca senti a necessidade de estar num partido. Por isso regressarei, se achar que posso dar um contributo. Seja no primeiro ou no último lugar de uma lista, é indiferente.

E o capítulo presidencial, está encerrado?
Nenhum capítulo está encerrado na vida...

Vê-se mais depressa a ser candidato ou a fundar uma revista de pensamento para fazer face à crise de ideias de que falava?
Não sei... Durante a campanha disse uma coisa que algumas pessoas achavam estranha. Quase tudo o que me aconteceu na vida, aconteceu por acaso. Nesses momentos procurei estar à altura das circunstâncias. Não tenho nada planeado.

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