A “América primeiro” e as falsas promessas da globalização

1. Muitos receiam hoje pelo fim da ordem internacional liberal. É vista como uma espécie de era de ouro de uma globalização assente no livre comércio e difusão de valores democráticos no mundo, com os EUA e União Europeia como sustentáculos desta. A chegada ao poder de Donald Trump nos EUA, com uma visão do mundo abertamente anti-globalização, deixou as elites liberais aterradas. Numa reversão do consenso liberal dominante desde os anos 1980, aos mercados abertos contrapõe uma economia nacional centrada na protecção do emprego e da indústria. Os instrumentos clássicos do nacionalismo económico — especialmente os direitos aduaneiros —, regressaram em força ao discurso político sobre o comércio internacional. Para os liberais, são instrumentos tradicionais da soberania económica nacional, tendencialmente obsoletos no mundo actual. Geram ineficiência e prejudicam os consumidores. Trump não quer saber desses argumentos de racionalidade económica liberal: ameaça utilizar direitos aduaneiros de novo. No seu discurso inaugural, a proclamação enfática da “América primeiro” não deixa dúvidas. Ao mesmo tempo, as questões da democracia e direitos humanos no mundo são marginais à sua política.

2. O pânico que Trump gerou no Fórum Económico Mundial de Davos de 2017 (não tanto pelo negligenciar das questões de direitos humanos, democracia e ambientais, mas pelo receio do mercado dos EUA se fechar às exportações), levou muitos a olharem para China como novo bastião de defesa da globalização. A situação é paradoxal e preocupante e não apenas devido às ideias de Trump: as democracias liberais da Europa e Ocidente a olharem para China como um garante da globalização? Absurdo. Enganam-se os que acham que Trump é o cerne do problema da continuidade da ordem liberal internacional. Na raiz mais profunda estão as contradições entre capitalismo e democracia e as tensões entre os ganhadores e perdedores da globalização. Trump é populista e demagógico. Aproveita-se destas contradições e do ressentimento dos perdedores. Manipulou habilmente a situação a seu favor. Mas o facto de a globalização ter beneficiado (e legitimado) o capitalismo autoritário tem outros responsáveis. É aí que está a maior ameaça às democracias liberais. No mundo, há hoje mais países a combinar o autoritarismo com capitalismo, do que a combinar o capitalismo com a democracia liberal. Tal como a China, não põem em causa a globalização, põem é em causa a democracia. Essa é uma ameaça existencial à ordem liberal-democrática.

3. Provavelmente o maior dano na arquitectura liberal internacional tem origem nos anos 1999 / 2000. Foi provocado pela intensificação da globalização, por ganância capitalista e erro de cálculo político. Na altura, capitalismo e democracia andavam a par. Acreditava-se nisso, ou era conveniente acreditar. Para além das supostas vantagens económicas, foi com esses argumentos que a China entrou na Organização Mundial de Comércio (OMC). O então Presidente dos EUA, Bill Clinton, em 1999 / 2000, foi um entusiasta da adesão. A China, nas palavras de Bill Clinton, não só iria abrir-se comercialmente ao mundo (leia-se, às multinacionais norte-americanas). Iria beneficiar a economia e emprego nos EUA. Iria caminhar mais rapidamente na direcção certa (leia-se, passar a respeitar os direitos humanos e abrir-se às liberdades democráticas). Falsas promessas. A abertura gerou perdas de emprego e ressentimento na classe trabalhadora. Criou um enorme défice na balança comercial que vulnerabiliza os EUA. Talvez esteja aí o princípio do fim da ordem liberal internacional criada após a II Guerra Mundial (que hoje tantos receiam ruir às mãos de Trump). A China converteu-se num modelo anti-democracia liberal. Combina, com grande sucesso, autoritarismo e capitalismo. Usa o comércio e o investimento directo no estrangeiro de forma estratégica, com objectivos de domínio económico e político — adquire posições nas infra-estruturas energéticas, no sector financeiro, etc. A globalização tem crescentes tonalidades chinesas e autoritárias.

4. O capitalismo não precisa da democracia para criar riqueza e bem-estar económico. Precisa da democracia para corrigir injustiças sociais, redistribuir riqueza e garantir liberdades fundamentais não económicas. Com a referida decisão de abrir as portas da OMC à China, o Presidente Bill Clinton tem uma particular responsabilidade no aumento dos perdedores da globalização nos EUA e Europa. Alimentou o terreno onde cresce o actual populismo nacionalista. Sobre os políticos da União Europeia da época — que também apoiaram a adesão da China —, recaem similares responsabilidades. Mais: se o capitalismo é combinado com a democracia liberal e o respeito dos direitos humanos, é por opção política de uma sociedade e não por efeito automático da abertura dos mercados. A ideia que o capitalismo e a democracia liberal andam inevitavelmente a par é falaciosa. Pode até ser destrutiva para a democracia. Enraizou-se devido à II Guerra Mundial e aos particularismos da Guerra-Fria. (Ver Azar Gat, “The Return of Authoritarian Great Powers” in Foreign Affairs, vol. 86, nº 4, Julho/Agosto, 2007). As grandes potências capitalistas autoritárias anteriores à guerra — a Alemanha e o Japão — foram militarmente derrotadas. O seu percurso de sucesso económico foi interrompido. A União Soviética, o outro grande vencedor da II Guerra Mundial, pretendia erradicar a economia capitalista e o mercado. A planificação e direcção central que pôs em prática na economia eram vistas como eficientes e um modelo a seguir por muitos países. Foi neste contexto hostil que o capitalismo estreitou a ligação à democracia liberal para sobreviver. Com a globalização já não precisa disso.

5. Os descontentes com a globalização são muitos, à esquerda e à direita. Nos primeiros tempos, a contestação mais forte e de mais sucesso vinha da esquerda. O Fórum Social Mundial (um anti-Fórum Económico Mundial de Davos) tornou-se uma referência dos movimentos alter-globalização. A partir da crise financeira e económica desencadeada em 2007/2008 — a grande crise da globalização —, foi a direita populista e nacionalista quem captou o descontentamento com crescente sucesso eleitoral. É verdade que há motivações anti-globalização genuinamente de esquerda e há outras claramente de direita que não se confundem e são antagónicas entre si. Mas há também zonas onde a contestação se intersecta: a defesa do emprego e produção nacional e a hostilidade à deslocalização de empresas são casos óbvios. Para os perdedores da globalização — especialmente quando são um eleitorado flutuante e sem grande consciência ideológica — isso tanto pode levar a votar nos partidos anti-establishment de esquerda como de direita. Nos EUA, parte da classe trabalhadora oscilou entre Bernie Sanders e Donald Trump. Provavelmente, contribuiu para a vitória deste último. Trump poderá ser um desastre para a ordem internacional baseada no livre comércio e democracia liberal. Mas foi o erro da adesão da China à OMC e o mal-estar provocado pela globalização na classe trabalhadora que mais danos causou ao futuro que hoje vivemos.

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