A Revolução está a dar noutro canal

No centenário da Revolução Russa, Mariano Pensotti põe-nos a pensar sobre o que resta do ideal de transformação do mundo e, no Teatro Maria Matos, questiona se não teremos optado por ser apenas espectadores da História.

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Pensotti começou a ler textos feministas à medida que, testemunhando o crescimento da sua filha, ia “tomando consciência de que maneira o capitalismo influi nos comportamentos e detém poder sobre os corpos

Nas suas aulas, Estela, professora universitária algures na Argentina, fala sobre o papel das mulheres na Revolução Russa a um grupo de alunos interessado apenas em somar créditos que lhes permita seguir para uma pós-graduação em Miami. Estela fala do exemplo de Alexandra Kollontai, histórica dirigente comunista soviética, importante teórica marxista ligada ao feminismo que, há cem anos, foi uma das primeiras mulheres a “impulsionar medidas como o divórcio, o voto feminino, o aborto legal, a união de casais do mesmo sexo… mas sobretudo a instalação da ideia do corpo como campo revolucionário”, diz Estela. Há cem anos, portanto, Kollontai falava já do corpo como território de subjugação e de controlo, mas também de reduto de liberdade. Pouco depois de elogiar essa antecipação das grandes reivindicações das teorias contemporâneas sobre o corpo, Estela há-de ver o corpo de Alexandra, sua filha, num programa de televisão género Dança com as Estrelas, nas mãos de um apresentador, tratado com a ligeireza de uma mulher objecto.

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E há-de irromper pelo mesmo estúdio, procurando a filha, para descobrir um filme pornográfico em plena rodagem, com um aprimorado argumento em torno da ideia de que o patrão pode abusar verbalmente de uma empregada que chegue atrasada por dar assistência a um filho doente, castigando-a com a ameaça de se vingar no subsídio de férias e impondo-se-lhe, depois, de uma forma graficamente física. Enfim, não é precisa muita matemática para concluir que entre a posse dos corpos dos escravos, como bem comercial e força laboral, e a plena disposição da vida actual dos trabalhadores talvez não se tenha avançado assim tanto.

Na boca de Estela, uma das três protagonistas de Arde Brillante en los Bosques de la Noche (sábado e domingo no Teatro Maria Matos, Lisboa, no primeiro momento da programação de teatro da Capital Ibero-Americana da Cultura), o autor argentino Mariano Pensotti coloca as suas próprias dúvidas: terão a Revolução Russa e o seu potencial explosivo de mudar o mundo sido convertidos em mera matéria lectiva, sem qualquer lastro na vida presente da maior parte do planeta? Viverá apenas através de pequenos fogachos, episódicos movimentos de ruptura ou contestação que desistiram de uma alteração da ordem mundial e passaram a contentar-se com conquistas muito concretas e cirúrgicas?

Pensotti, que frisa não ter qualquer filiação comunista, começou a ler textos feministas à medida que, testemunhando o crescimento da sua filha, ia “tomando consciência de que maneira o capitalismo influi nos comportamentos e detém poder sobre os corpos”. Por sugestão da directora do teatro berlinense Hebbel am Ufer onde Arde Brillante se estreou na semana passada, chegou até Alexandra Kollontai. Descrente na possibilidade de uma qualquer revolução global, assistindo ao “avanço da direita e à forma como as forças políticas de esquerda não encontram uma forma válida de se organizarem para encontrar uma alternativa de resolução dos mesmos problemas de há cem anos – a opressão e a exploração de uma classe por outra, as diferenças de género, as desigualdades continuam tão grandes como antes”, vê em casos como os de Rojava, na Síria, alguns isolados exemplos de como a diferença é ainda possível. A região de Rojava, esclareça-se, proclamou a sua independência em relação ao restante território sírio, instigada por um forte movimento feminino que implantou um sistema de democracia directa.

Na Argentina, Pensotti destaca também os movimentos de operários que se organizaram por sua conta para porem as fábricas a funcionar. Mas, no geral, e é essa ideia que atravessa as três histórias de Arde Brillante, passámos a ser mais espectadores do que protagonistas da História. “E ainda por cima”, acrescenta, “somos espectadores de uma História que se parece cada vez mais com um reality show.”

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O que se é e se podia ser

Não é de agora que o teatro de Mariano Pensotti se mostra num equilíbrio entre aquilo que somos e aquilo que poderíamos ter chegado a ser e não fomos. Mas até aqui esse confronto entre a realidade e o sonho, entre o concretizado e o idealizado, entre o possível e o utópico existia sobretudo num plano individual e pessoal, “em que ao escolhermos um percurso de vida estamos a colocar de lado outras vidas possíveis”. “Essa era uma ideia que me interessava muito e penso que é uma sensação muito presente nas sociedades latino-americanas, a de que se podia ter sido alguém melhor noutro lado. Em Arde Brillante, essa ideia surge a partir de um lugar mais político. As sociedades são o que são e confrontam-se sempre com o que poderiam ter chegado a ser e não são. Na América Latina, penso que há um sentimento muito forte de que estamos sempre a um pequeno passo de chegar a um sítio muito melhor, mas que lamentavelmente nunca acontece.”

Ainda assim, esclarece o dramaturgo e encenador, tenta manter esta ideia sempre a salvo de qualquer melancolia. Não quer que os falhanços históricos possam ser causa de amargura, vitimização, anuência e perda definitiva. “Isso não me interessa para nada”, garante. “Interessa-me sim que seja algo gerador de acção.” O potencial de transformação, que Pensotti acredita nunca se esgotar, encontra-se também na própria forma como põe em marcha a estrutura da peça, ditada também pela sua crença de que “não só a sociedade mas também a arte, no geral, tornou-se cada vez mais conservadora nos últimos anos”. Arde Brillante começa com os actores a manipularem marionetas em palco, seguindo o percurso de Estela; desloca-se em seguida para um bairro operário alemão que existe numa peça de teatro no centro da qual encontramos Sonja, regressada de uma temporada ao serviço da guerrilha na Colômbia; e desemboca finalmente num filme em que seguimos Claudia, uma das apresentadoras de um programa de televisão que se dedica a debater o centenário da Revolução Russa a partir de uma perspectiva feminista.

Aqui e ali, emerge a história de uma polaca que se submeteu a uma cirurgia estética para se transformar numa sósia de Angela Merkel e, assim (só assim), poder almejar a ter uma palavra nos destinos do mundo. E de uma estátua de Lenine adulterada para adorar Darth Vader, como se o lugar do sonho tivesse passado para um outro plano – o do irrealizável.

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