Welcome to Casa da Música!

Três excelentes concertos coroaram o fim-de-semana em que a instituição abriu as portas ao Ano Britânico.

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O Coro Casa da Música demonstrou neste concerto a sua grande maturidade ALEXANDRE DELMAR

Como boa anfitriã que é, a Casa da Música, em representação da própria cidade do Porto, fez questão de tornar a inauguração oficial do Ano Britânico a mais especial das aberturas temáticas que até hoje organizou. Simbolicamente intitulada God Save the Queen!, contou com um diversificado conjunto de eventos relacionados com o país-tema da temporada 2017, numa simbólica e diplomática homenagem a Terras de Sua Majestade que serviu também como convite a que em 2017 a música britânica se sinta em casa numa Casa que já é um dos principais centros musicais europeus. Os momentos altos do fim-de-semana foram os três concertos dos grupos residentes (Orquestra Sinfónica, Remix Ensemble e Coro), que propuseram diferentes perspectivas sobre a música britânica.

O programa do primeiro concerto foi diversificado, contemplando formações distintas e obras de épocas e estilos diferentes que constituem referências da história da música britânica. O Coro Casa da Música realizou uma boa interpretação de três das Lachrimae de Downland, num arranjo para coro a cappella a cinco partes realizado pelo maestro Paul Hillier. Seguiu-se Earth Dances, a emblemática composição orquestral da música inglesa do final do século XX, que assinalou o primeiro concerto dedicado a Harrison Birtwistle (n. 1934)  compositor em residência na Casa em 2017. A orquestra interpretou esta gigantesca e exigente peça sinfónica com segurança e clarividência interpretativa, sublinhando o sentido de um discurso musical marcado pela complexidade rítmica e pela grande densidade das texturas polifónicas. A excelente direcção do maestro Brönnimann, rigoroso e claro nos seus gestos, contribuiu decisivamente para o bom desempenho.

Para concluir o concerto escutaram-se mais duas peças, Júpiter, da suite Os Planetas, de Holst, e a simbólica Rule, Britannia de Thomas Arne num arranjo para orquestra sinfónica realizado por Malcolm Sargent, tendo esta última sido interpretada pela soprano Ângela Alves e pelo Coro Comunitário propositadamente criado para este concerto.

O concerto de sábado, pelo Remix Ensemble, proporcionou um interessante contacto com a música inglesa do século XXI, através da estreia portuguesa de três obras  duas delas encomendadas pela Casa da Música (Van Gogh Blue e Skin). O concerto começou com Van Gogh Blue, de Julian Anderson (n. 1967), obra composta em 2015 para um ensemble de oito instrumentistas. Esta peça divide-se em cinco partes autónomas influenciadas pela obra de Van Gogh, até na presença de elementos descritivos num discurso musical que se caracteriza pela transparência sonora. Destacam-se os dois clarinetes concertantes, excelentemente executados por Victor Pereira e Ricardo Alves, que ao longo da peça percorrem quatro posições diferentes no palco, indicadas pelo compositor.

Estimulada pela visualização da peça televisiva The Ghost Trio, de Samuel Beckett, a compositora Rebecca Saunders (n. 1967) compôs em 2016 Skin, para soprano e 13 instrumentistas. Saunders aborda a composição musical de um modo quase táctil, esculpindo o discurso musical em todos os seus detalhes. Esta abordagem aproxima-se do conceito de "música concreta instrumental" de Helmut Lachenmann, mas também de referências musicais mais antigas  como Aventures, de György Ligeti, ou Eight Songs for a Mad King, de Peter Maxwell Davies –, particularmente ao nível da interacção voz-instrumentos e da teatralidade da performance musical. A música de Saunders apresenta no entanto traços originais, tais como o refinamento dos elementos sonoros e o modo como os integra e articula no tempo, dando especial ênfase à dicotomia som-silêncio. A escrita vocal e instrumental revela uma compositora madura, conhecedora das possibilidades técnicas e expressivas dos meios que tem ao seu dispor, explorando combinações inusitadas de timbres e de registos, num discurso musical de grande riqueza sonora, mas simultaneamente fluido e coerente, no qual a voz solista é o principal elemento condutor. A soprano Juliet Fraser, com quem Saunders trabalhou intensamente durante o processo de composição de Skin, revelou-se uma cantora particularmente dotada para a interpretação de música desta natureza. Destaca-se a sua capacidade de afinação, assim como a vocalização rigorosa de todos os detalhes da partitura e ainda a subtileza com que abordou a teatralidade inerente à obra.

O concerto terminou com Theseus Game (2002-03), de Birtwistle, para um ensemble de 30 instrumentistas dirigidos por dois maestros. A obra apresenta diversos traços particulares, nomeadamente a presença dos dois maestros que dirigem dois grupos instrumentais autónomos em contraponto a uma linha melódica executada por 12 instrumentos solistas que sucessivamente se deslocam para a frente do palco. Esta linha melódica contínua serve de fio de Ariana por entre o labirinto musical que o ensemble desenvolve. Um outro aspecto interessante é o recurso a dois pares de instrumentos (dois trombones e dois trompetes) que em determinados momentos se deslocam simetricamente para cada um dos lados exteriores do ensemble, contribuindo para a sua mobilidade enquanto fonte sonora. 

O desempenho dos solistas e dos restantes elementos do Remix foi exemplar ao longo de todo o concerto. De igual modo, o maestro Peter Rundel demonstrou mais uma vez as suas extraordinárias capacidades musicais, destacando-se o rigor e a energia que coloca na sua direcção e que contagia todo o ensemble. Foi bem acompanhado, em Theseus Game, pelo maestro Pedro Neves, numa parceria que demonstrou bom entendimento musical.

O programa do concerto de domingo proporcionou uma perspectiva da música coral a cappella inglesa, desde as suas raízes medievais até à música contemporânea de Birtwistle, sem ignorar a deslumbrante música renascentista de Dunstable, Tallis, Taverner e Dowland. O coro correspondeu com naturalidade aos desafios colocados pela variedade estilística do repertório, nomeadamente ao nível da afinação, do equilíbrio vocal e do estilo interpretativo. O grupo de 18 cantores desdobrou-se em formações diferentes de acordo com as características das peças interpretadas, desde a textura a três partes de Quatro hoquetus de Aleluia (de autor anónimo do século XIII) cantada por três pares de vozes masculinas, até à complexidade polifónica dos belíssimos Three Latin Motets de Birtwistle (o primeiro apresenta até 13 partes vocais independentes).

O excelente nível interpretativo que o coro manteve ao longo do concerto é demonstrativo da experiência e da maturidade actual do grupo. Sobressaíram a afinação, a clareza da dicção do texto, a transparência e o equilíbrio do conjunto vocal, mas também a sensibilidade com que colocou a música ao serviço das palavras, em particular nas composições renascentistas. Deve igualmente ser prestado o devido reconhecimento ao maestro Paul Hillier, que, com sua experiência e extraordinária sensibilidade musical, contribuiu de forma indelével para a excelência deste concerto.

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