Retrato de uma América dividida

Desde que regressou aos EUA, depois 15 anos de fotojornalismo de guerra, Christopher Morris nunca mais parou de olhar criticamente para o seu país. A exposição Americanos, na Galeria Barbado, em Lisboa, mostra-nos um país exausto e dividido.

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Campanha de George W. Bush em Tampa, Florida, 2004 Christopher Morris/VII
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Casa Branca, 2004 Christopher Morris/VII
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Campanha de John Kerry, em West Palm, Florida, 2004 Christopher Morris/VII
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Habitantes de Marks, Missouri, durante a campanha presidencial de John Edwards, 2007 Christopher Morris/VII
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Pernas de George W. Bush e as de um amputado, vítima de guerra, em Washington, D.C., 2006 Christopher Morris/VII
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Universitárias ouvem George W. Bush, em Harrisburg, Pennsylvania, 2004 Christopher Morris/VII

Quando, na viragem do milénio, o repórter norte-americano da revista Time Christopher Morris decidiu pendurar as botas do fotojornalismo de guerra pode ter havido quem pensasse que ia descansar à sombra da agenda da Casa Branca, com tudo o que isso podia significar de rotina e de previsibilidade. Cansado e atordoado depois de mais de uma década e meia atolado na cobertura de conflitos em todo o globo, Morris regressou a casa em 2000 para ser correspondente na residência oficial (e principal local de trabalho) do Presidente dos Estados Unidos, um epicentro de poder carregado de regras e limitações. Certo é que, mesmo manietado por todo o tipo de espartilhos de segurança e restrições à captação de imagens, o trabalho na Casa Branca (e fora dela) que este irrequieto e multipremiado repórter desenvolveu entre 2000 e 2009 é comummente aceite como tendo “redefinido a cobertura política na América” no campo da fotografia documental. São desse período de patriotismo acirrado (tempos em que George W. Bush ordenou, entre outras, “uma guerra global contra o terrorismo”) a maior parte das fotografias da exposição Americanos, que a Galeria Barbado, em Lisboa, mostra desde ontem.

Muito longe de se contentar com uma (muito antecipada) pré-reforma e um trabalho pacato, assim que assentou nos EUA a trabalhar (no Verão de 2000, quando as candidaturas de Bush e Al Gore davam tudo por tudo para chegar ao poder), Christopher Morris (Califórnia, 1958) começou a experimentar novas abordagens à fotografia de assuntos políticos, por norma muito mais preocupada em registar os símbolos, a agitação, os rostos e os acontecimentos “obrigatórios” do que os pormenores, a serenidade e os bastidores do enorme espectáculo que é a política americana.

Logo nessa viragem que marcaria o início do reinado de George W. Bush, a ambição de Morris de encontrar olhares alternativos sobre o que se passava à sua frente nota-se em imagens que preferem mostrar as costas dos protagonistas, naquelas que procuram os rostos deliciados com os discursos empolgantes, as que apontam para o chão à procura de despojos da festa e da coreografia das pernas ou ainda as que cortam os olhos das caras na expectativa de nos levar a atenção apenas para um autocolante colado no peito. A sensação que fica é a de que quando toda a gente está a olhar para um lado é bem possível que Christopher Morris esteja a olhar para outro.

Ainda fresco da experiência de fotografar em teatros de guerra, onde acontece muita coisa ao mesmo tempo e onde é preciso decidir rápida e acertadamente, nas campanhas de Gore e de Bush o fotógrafo americano procurou valer-se dessa capacidade de se isolar no meio do caos para decidir o que registar com serenidade, mas recusando alheamento ou neutralidade. “O meu trabalho sobre os Estados Unidos da América tem sido desde sempre uma tentativa de encontrar imagens que se relacionem com o meu estado de espírito sobre o meu próprio país”, afirma o fotojornalista no texto que acompanha a exposição em Lisboa (até ao dia 4 de Março).

O rescaldo da derrota do democrata Al Gore em 2000 acentuou a clivagem política dos EUA. Os atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001 soltaram vários medos e puseram a América à procura de inimigos com quem travar guerras. Dentro deste complexo pot-pourri político, onde os discursos se radicalizaram, Morris viu crescer novos ódios, novas ameaças e uma enorme onda patriótica. “Por vezes senti um país com os olhos tão tapados pelo vermelho, branco e azul, que se tornou cego. Cego pelo nacionalismo. Outras vezes, uma nação em crise extrema, num sentimento de depressão. Guerras longas e contínuas e uma economia que parecia precipitar o país na perda de optimismo.”

O resultado do trabalho durante o primeiro (e agitado) mandato de Bush ficou plasmado no livro My America (Steidl, 2006), um mergulho às profundezas da América republicana e o seu lado mais puritano, nacionalista, militante e radical. Era um mundo que Morris desconhecia e que o surpreendeu. "O meu trabalho noutros países abriu-me os olhos e tornou-me sensível ao que acontece às pessoas na guerra e à maneira como as nações e os políticos jogam com os medos das pessoas para obter o seu apoio. Vi isto em muitos países e em muitos conflitos. Os governos são muito perspicazes em usar a etnia ou a nacionalidade em seu proveito. Fiquei chocado ao perceber que isto também acontecia na América", disse ao jornal Telegraph por ocasião do lançamento de My America, a sua primeira monografia.

Com fim da era Bush e o início da era Obama, em 2009, Christopher Morris deixou de ser correspondente na Casa Branca, procurando alargar ainda mais o âmbito do seu trabalho na tentativa de perceber “o estado de espírito” da América. Os círculos de actuação aumentaram, mas o seu estilo de fotografar política manteve-se: atenção aos detalhes, ao simbolismo (não aos símbolos), às traseiras dos acontecimentos mainstream, aos pequenos acontecimentos, às pessoas, que parecem estar alheadas do fotógrafo e, ao mesmo tempo, confortáveis com a sua presença. Manteve-se uma fotografia sem artifícios: “Para mim a fotografia é uma coisa simples, sem grandes complicações”.

Dessa jornada que tentava compreender um país ainda a lamber as feridas de duas longas guerras (Afeganistão e Iraque) e com a economia à beira do colapso, surgiu Americans (Steidl, 2012), onde Morris diz ter “sofrido” para não publicar “fotografia política”. Ou seja, retratos de Barack Obama ou Mitt Romney, logótipos de campanha ou de partidos. Foram anos em que se encontrou perante uma América (mais uma vez) “profundamente dividida” e um sentimento de que o país estava “em estado depressivo”, longe do “optimismo e da vivacidade”, um país “puxado e empurrado em direcções opostas”. À excepção de um ou outro retrato formal, o livro mostra pessoas sozinhas, num estado de melancolia ou perdidas em pensamento. O estado em que Morris diz ter encontrado a América dessa época.

A exposição Americanos, comissariada por Luís Vasconcelos, fundador e um dos principais dinamizadores do Estação Imagem, um dos poucos acontecimentos ligados ao fotojornalismo em Portugal, junta imagens destes dois corpos de trabalho de Christopher Morris, bem como fotografias mais recentes captadas durante as campanhas de Hillary Clinton e Donald Trump. O que quer dizer que Morris continua a olhar para o que se passa no seu país, independentemente de qualquer restrição de movimentos ou de calendário: “As imagens, que vejo e sinto, são o meu estudo antropológico sobre um período da história dos EUA. Espero que passem no teste do tempo”.

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