Já houve um "Presidente de pantufas"

É uma América desagregada que vê chegar Donald Trump à Casa Branca. Há 15 anos, o ambiente político estava tão polarizado como hoje. E as dúvidas sobre o que seria a presidência eram muitas. O que será preciso para unir de novo este país?

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George W. Bush e Al Gore, durante um debate na campanha de 2000 Reuters

Está sempre muito frio em Washington em Janeiro. O dia 20 de Janeiro de 2001 estava gélido. Chovera durante a noite, o céu estava cinzento, a atmosfera carregada de água fria e a cidade mostrava-se agreste e desagradável. No Capitólio, um Presidente sob suspeita de ilegitimidade tomava posse e a cidade ressentia-se. Washington recebia Bush, mas não vibrava com a presença de um novo Presidente na Casa Branca.

A guerra pela vitória tinha sido violenta e deixara feridas muito fundas que era preciso sarar. A América nunca esteve tão dividida, a política nunca esteve tão polarizada — iam dizendo os comentadores.

Bush, suspeitava-se, vencera a eleição com a ajuda do irmão, Jeb, governador da Florida, onde se usavam cartões de perfuração (como os das rifas nas feiras) como boletins de voto. Jeb mandou anular os boletins onde o voto assinalado pertencia a Gore, mas onde o furo não ficara totalmente aberto — os “hanging chads”, papelinhos pendurados. A luta pela vitória arrastou-se, o derrotado, Al Gore, contestou, foram exigidas contagens, recontagens, pedida a intervenção dos tribunais. Mas mal o Supremo se pronunciou, a guerra acabou.

Gore disse que Bush era o seu Presidente e ouviu o vencedor dizer, na tomada de posse, que seria o Presidente de “todos os americanos”.

Mas encerrado um capítulo, abriu-se outro. O que se devia esperar de um Presidente que nada sabia de política externa, que pouco sabia de política interna e que tinha que provar ter mérito para morar na Casa Branca? No dia da tomada de posse, os americanos nada esperavam  — “Bush gera uma espécie de expectativa negativa. E os cidadãos estão à espera de ver como vai ganhar o seu mandato” (PÚBLICO de 20/01/2001).

Bush configurava-se como um “Presidente de pantufas”, uma expressão que, por respeito institucional, foi rapidamente abandonada. Apareceria nas cerimónias, faria os discursos oficiais (sem fugir do guião), seria poupado aos directos para evitar novas vergonhas. Durante a campanha, quando uma jornalista da revista Glamour lhe perguntou sobre os taliban, Bush hesitou, hesitou, a jornalista ajudou-o — “taliban, Afeganistão” — e ele respondeu: “Pensava que estava a falar de um grupo rock”. E deixaria os veteranos que foi buscar à equipa governativa do pai, George H. Bush, tratar dos assuntos de Estado.

Os americanos resignaram-se a ter um Presidente de personalidade fraca e de sabedoria mediana e ajustaram-se à ideia de que, durante pelo menos quatro anos, Bush seria uma figura secundária na vida do país.

Tudo mudou a 11 de Setembro de 2001. Perante o trauma colectivo, as dúvidas sobre a legitimidade de Bush desapareceram. Os americanos iludiram também o tema da qualidade do Presidente. Como há muitas décadas não faziam, e como acontece nas nações ameaçadas e agredidas, uniram-se para se proteger. Bush, o Presidente "ilegítimo e de pantufas", emergiu como comandante-em-chefe da América. A catástrofe agregou o que parecia irremediavelmente desagregado.

 

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