A presidência perigosa

É muito cedo para discutir cenários de catástrofe. Trump deve ser levado a sério mas ainda não sabemos o que ele vai exactamente fazer.

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A presidência de Donald Trump será manifestamente diferente das anteriores. Entre as muitas interrogações que suscita, destaco duas: saber se será um Presidente forte ou vulnerável e o modo como enfrentará as situações de crise que a sua personalidade e as suas propostas políticas desde já anunciam.

O discurso inaugural tem a obrigação de surpreender. A imprevisibilidade é a sua marca, arma para destabilizar adversários e criar um clima de insegurança. Não é difícil prever "cem dias" frenéticos, para desfazer o "legado de Obama" e mostrar que cumpre as promessas. Trump precisa de ganhar legitimidade e credibilidade. Sabe que é minoritário e que sobre ele paira uma incómoda "sombra russa". Tem de subir nas sondagens para se impor ao Partido Republicano.

Será um Presidente fraco, enredado nas contradições da sua política ou o "mais perigoso Presidente da História americana"? Para ser um Presidente forte tem de dominar o Congresso, o que não é garantido. Não é um dirigente republicano, é um independente que ganhou as primárias republicanas. Sem o partido não teria vencido.

É alto o potencial de conflito com os conservadores republicanos. Um primeiro sinal já foi dado pela questão do Obamacare. Quando os republicanos começaram a preparar a sua imediata supressão, Trump avisou-os de que só o faria depois de estar pronto outro plano de saúde alternativo. Não quer voltar contra si 18 ou 20 milhões de pessoas. Ganhou as eleições a prometer empregos e solidariedade social.

O jornalista francês Antoine de Tarlé denuncia os estereótipos que dominam a opinião europeia. "O afrontamento não se joga entre um Trump reaccionário e cripto-fascista e parlamentares republicanos moderados e razoáveis. A realidade é inversa. Donald Trump é um populista e um demagogo, mas não é um ideólogo, passou a vida em Nova Iorque, uma cidade liberal. Ora, o Partido Republicano começou há 30 anos uma viragem para a extrema-direita, designadamente em matéria social." Viragem depois radicalizada pela emergência do Tea Party.

Do ponto de vista social e de costumes, os concorrentes republicanos nas primárias, como Ted Cruz ou Marco Rubio, foram muito mais "reaccionários" do que Trump. Inversamente, a maioria republicana não apoia a deportação maciça de imigrantes ilegais nem se entusiasma com o muro mexicano. E muito menos com a sua anunciada política russa. A aliança de Trump com a nova ultradireita, a "alt-right", e o seu conselheiro Steve Bannon, é marginal no esquema politico.

Trump tem um calcanhar de Aquiles: os conflitos de interesses que, em caso de confronto grave com os republicanos, podem levar à abertura de um processo de impeachment. Não faltarão pretextos. Estará sob permanente escrutínio.

America First

Trump não tem uma estratégia nem um programa articulado. Tem uma ideia: "America First". Afasta-se da concepção tradicional do "excepcionalismo americano", assente na crença de que os Estados Unidos são uma nação diferente e destinada a inspirar e dirigir o mundo. A sua ideia é outra: fazer uma América maior, arrebatando mais riqueza e poder do que os outros.

A América combinou o excepcionalismo com o isolacionismo, recusando envolver-se em alianças militares permanentes. A II Guerra Mundial marca uma viragem. Os EUA decidem fundar a Aliança Atlântica e estabelecem alianças no Oriente, que sobreviveram à Guerra Fria. É este mundo que Trump aposta destruir. "É um assalto directo contra a ordem liberal que construímos desde 1945 e o repúdio da ideia de que os EUA devem liderar o mundo", resume o diplomata americano Nicholas Burns.

À imagem do mundo empresarial, propõe substituir as instituições e alianças fixas uma "diplomacia transacional" — "negócios" ou acordos temporários segundo os interesses imediatos da América. Um "negócio" com a Rússia pode sacrificar os interesses e a segurança de "aliados".

Fez da China o adversário principal. Admite-se que aceite correr o risco de desencadear uma guerra comercial com Pequim. O que poderá ter um preço elevado: não é certo que os aliados tradicionais alinhem com Washington. Um candidato não precisa de aliados, mas um Presidente não passa sem eles.

Que é estratégico e que é expediente táctico nas suas ameaças? Não sabemos. A questão de Taiwan parece uma forma de tentar arrancar concessões a Pequim. A atracção por Moscovo também é nebulosa e pode ser percebida como um "negócio" para reforçar Washington no confronto com Pequim. Entretanto, a Rússia marca pontos com as tiradas de Trump contra a Europa, declarando a NATO obsoleta e augurando a desintegração da UE, definida como rival económica dos EUA.

Trump é proteccionista mas não é isolacionista. Pretende manter a capacidade de intervenção global perante ameaças a interesses directos americanos e aumentar o seu poderio militar.

Este cocktail encerra um elevado potencial de conflito. Soam alarmes. O historiador americano David A. Bell avisa que o populismo foi o contexto que favoreceu a ascensão de Trump mas que a sua personalidade foi o factor determinante. Não devemos pensar apenas nas "forças impessoais" mas no papel de alguns homens na História, escreve Bell na Foreign Policy.

Imprevisível

"Ele tem potencial para se tornar no mais poderoso Presidente da História americana. E é também um dos mais imprevisíveis homens jamais eleitos para o cargo. Não é guiado por uma ideologia sistemática". A sua determinação, a egolatria, o desdém pela opinião dos outros ou a dificuldade de escutar os conselheiros agravam a imprevisibilidade.

"Como reagirá numa situação de crise? Alguém consegue saber?" Bell enumera as crises potenciais no mundo de hoje e recorda a crise dos mísseis em Cuba de 1962. "Nestas decisões, a personalidade de Trump poderá assumir (…) uma importância histórica mundial. As personalidades de outros líderes, especialmente Vladimir Putin, também contarão de forma crítica se entrarem em conflito com Trump. Se forças impessoais promoveram a ascensão pessoal de Trump, também é fácil imaginar a sua perturbada personalidade a arrastar o país para uma queda colectiva."

É muito cedo para discutir cenários de catástrofe. Trump deve ser levado a sério mas ainda não sabemos o que ele vai exactamente fazer. Pode ser travado por um fiasco na economia ou pelo pesado muro das realidades geopolíticas. Os Estados não são negócios.

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