Dentro da cabeça do tigre-da-tasmânia, extinto há 80 anos

Dois cérebros preservados do tigre-da-tasmânia foram analisados e comparados com o seu parente mais próximo, o diabo-da-tasmânia. Além dos dados sobre a sua estrutura cerebral, a experiência mostrou o sucesso de uma nova técnica.

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Último tigre-da-tasmânia morreu num jardim zoológico em 1936 Museu e Galeria de Arte da Tasmânia em Hobart
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Imagens dos exames aos cérebros do tigre-da-tasmânia (à direita) e do diabo-da-tasmânia (à esquerda) Universidade de Emory
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Ilustração na edição de 1863 da obra Mamíferos da Austrália, de John Gould John Gould

Era um dos raros marsupiais com bolsas abdominais em machos e fêmeas, tinha o corpo de um cão de porte médio e, no dorso, ostentava umas riscas semelhantes às de um tigre. Uma equipa de cientistas quis saber mais sobre o extinto tigre-da-tasmânia e analisou dois dos quatro cérebros que ficaram preservados desde o seu desaparecimento. Os resultados, publicados esta semana na revista PLOS ONE, revelam que o Thylacinus cynocephalus tinha uma estrutura cerebral adequada ao seu estilo de vida de predador.

O último tigre-da-tasmânia morreu em 1936 no jardim zoológico de Hobart, na Tasmânia, mas pouco se sabe sobre esta espécie que parecia ser o resultado de uma mistura de vários animais. Depois de uma equipa de investigadores ter analisado, em 2009, o seu genoma, concluindo que estes animais tinham uma falta de diversidade genética que punha em causa a sua sobrevivência, há agora um estudo que revela o resultado de um exame ao seu cérebro.

Por um lado, os cientistas usaram a ressonância magnética para procurar informação sobre a arquitectura do cérebro – ou, se preferirem, sobre a matéria cinzenta. Por outro, recorreram a uma outra técnica conhecida como “imagem por tensores de difusão” (DTI, na sigla em inglês), que permite obter dados sobre a matéria branca, ou seja, sobre a forma como as moléculas se movem nos tecidos, revelando os circuitos neuronais. Gregory Berns, neurocientista da Universidade de Emory, em Atlanta (EUA), e principal autor do artigo científico, apresenta-se num comunicado sobre o estudo como pioneiro numa abordagem especial que usa a DTI e que permite reconstruir digitalmente as redes neuronais de animais, usando material preservado em colecções de museus. Foi isso que fez com golfinhos em 2015 e agora com o tigre-da-tasmânia usando, para efeitos de comparação, o diabo-da-tasmânia, o seu parente mais próximo que (ainda) não foi extinto. Actualmente, após a extinção do Thylacinus cynocephalus, o diabo-da-tasmânia é o maior mamífero marsupial carnívoro existente.

Os resultados sugerem que os tigres-da-tasmânia, quando comparados com o diabo-da-tasmânia, usavam uma parte maior do córtex para executar acções complexas associadas ao seu lado de predador, tais como planeamento e tomada de decisões. Nas imagens, referem os autores, as zonas que controlam alguns movimentos do corpo e que têm um papel importante na aprendizagem e memória (núcleo caudado) eram maiores no tigre-da-tasmânia. Os resultados coincidem com o comportamento observado destes animais: os tigres-da-tasmânia eram predadores, enquanto diabos-da-tasmânia são caçadores pouco eficientes e sobretudo necrófagos, alimentando-se de restos de animais mortos.

“O comportamento natural do Thylacinus cynocephalus nunca foi cientificamente documentado”, constata Gregory Berns. Também citado no comunicado, Kenneth Ashwell, especialista da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Nova Gales do Sul (Austrália) e co-autor do artigo, sublinha que “a tecnologia que permite obter imagens dos cérebros preservados de espécies raras, extintas e em perigo é uma inovação emocionante no estudo da evolução cerebral”: “Estas técnicas vão permitir rastrear circuitos e estudar ligações funcionais que nunca poderiam ser analisadas com as técnicas experimentais mais antigas.”

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Museu e Galeria de Arte da Tasmânia em Hobart

Uma arca de cérebros

Existem apenas quatro espécimes preservados de cérebros de tigres-da-tasmânia, refere ainda o comunicado. Neste estudo, os cientistas tiveram acesso a dois deles, um de um macho que morreu em 1905 no Jardim Zoológico Nacional na cidade de Washington (emprestado pela Instituição Smithsonian) e outro de um animal que morreu na década de 1930 (emprestado pelo Museu Australiano em Sydney).

Para Gregory Berns, a “reconstituição digital do cérebro” do tigre-da-tasmânia é particularmente importante porque ele está extinto e porque os espécimes usados eram mais velhos do que os dos golfinhos, usados num estudo anterior. E isso é mais uma prova do sucesso da técnica no estudo de colecções. “Embora seja mais fácil estudar os cérebros de animais que morreram recentemente, mostramos neste estudo que podemos usar com sucesso as nossas técnicas de imagem em espécimes com 100 anos”, diz o cientista. “Agora temos a tecnologia disponível para explorar o tesouro de colecções em museus de todo o mundo.”

E o neurocientista tem um plano para essa aventura. O projecto chama-se Brain Ark (ou Arca do Cérebro) e tem como objectivo criar um arquivo digital e tridimensional das estruturas cerebrais da megafauna na Terra, com acesso aberto. Actualmente, esta arca tem a bordo os resultados dos trabalhos com golfinhos, tigres-da-tasmânia e diabos-da-tasmânia. “Sabemos muito sobre cérebros de primatas e ratos, mas há muitos outros cérebros de animais lá fora que ninguém olhou com qualquer tipo de detalhe”, diz Gregory Berns. “O Brain Ark vai preencher essa lacuna e, numa época em que grande parte da megafauna do planeta está em risco de extinção, é importante reunir o máximo de dados antes que muitos desses animais desapareçam.”

Os fósseis permitem concluir que o tigre-da-tasmânia apareceu há cerca de quatro milhões de anos na Austrália. No século XX, estava extinto, ou era extremamente raro, no continente, mas ainda era encontrado na Tasmânia. O desaparecimento do último exemplar conhecido da espécie, que morreu há mais de 80 anos, foi associado ao homem, mais precisamente à perda de habitat devido à actividade agrícola, juntamente com um esquema de recompensa para o matar por este predador ter sido apontado como suspeito da morte de ovelhas e outros animais.

O diabo-da-tasmânia ainda sobrevive na ilha. E, tal como o seu “primo”, este marsupial carnívoro tem características especiais. Tem umas poderosas mandíbulas e um grito único no reino animal, por exemplo. Também sofre de uma rara forma de cancro: um tumor facial contagioso, que os animais transmitem uns aos outros através da luta. E está ameaçado: a população selvagem dos diabos-da-tasmânia diminuiu 70% nos últimos 20 anos.

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