Procuradora estava pronta a acusar filhos de embaixador se imunidade tivesse sido levantada

Ministério Público considera que provas recolhidas mostram que os dois irmãos iraquianos agrediram jovem de 16 anos “com violência” e conclui que filhos do embaixador “agiram com intenção de tirar a vida” à vítima.

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Filhos do embaixador deram entrevista televisiva na qual falaram sobre o sucedido Rui Gaudêncio

A procuradora responsável pela investigação à agressão de um jovem de 16 anos, em Ponte de Sor, em Agosto passado, considerou estar em condições de acusar os dois filhos do embaixador iraquiano por tentativa de homicídio. A única diligência que faltava era a audição dos dois irmãos iraquianos, na qualidade de arguidos, o que só poderia acontecer se a imunidade fosse levantada, uma hipótese que parece afastada agora que o embaixador e a sua família vão abandonar Lisboa, segundo adiantou esta quinta-feira o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva.

Num despacho proferido na semana passada, a procuradora Aurora Rodrigues diz que nesta fase do inquérito “está em condições de ser proferido despacho final quanto aos factos de que foi vítima" o jovem, logo que os iraquianos "sejam ouvidos, na qualidade de arguidos”. A procuradora admitia realizar novas diligências de prova, se os suspeitos o pedissem, mas enumerava desde logo de forma exaustiva os factos apurados, como se faz numa acusação.

A magistrada considera que provas recolhidas mostram que os dois irmãos iraquianos agrediram o jovem de 16 anos “com violência” e conclui que os filhos do embaixador “agiram com intenção de tirar a vida” à vítima. Por isso, indicia-os por tentativa de homicídio. 

Refere-se uma vasta lista de meios de prova, em que se incluem, além de inúmeros testemunhos, dois relatórios do Instituto Nacional de Medicina Legal que avaliaram os danos da vítima, uma reportagem fotográfica e a análise de vestígios pelo Laboratório de Polícia Científica do local do crime e imagens de videovigilância com relevância para o processo. 

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Bar Koppus, onde começaram as agressões Pedro Elias

Provocações e confrontos num bar

As inquirições clarificam o que se passou. Foram ouvidos os amigos da vítima que estavam com ele na noite dos incidentes, os militares da GNR que se dirigiram ao bar, o dono do bar, os funcionários da câmara que trabalham na recolha do lixo e que viram as agressões dos gémeos iraquianos, um morador que estava a dormir e foi à janela ver o que se passava. 

Os elementos de prova indiciam, diz o Ministério Público, que a 17 de Agosto de 2016, entre as 2h e as 3h da manhã, no Bar Koppus, houve um desentendimento entre dois grupos de jovens: o da vítima, e o dos filhos do embaixador. Isto, porque um dos irmãos iraquianos “tinha baixado as calças, virando-se de costas para o grupo, em atitude que consideraram provocatória, e feito gestos obscenos com as mãos”, lê-se no despacho.

Os ânimos exaltaram-se, mas a intervenção do dono do bar acalmou os dois grupos. Contudo, pouco depois, os filhos do embaixador saem do estabelecimento. E de seguida sai igualmente a maior parte dos elementos do grupo no qual estava a vítima. Junto ao bar houve “confrontos físicos” entre o grupo da vítima, da qual fariam parte seis jovens, e os dois irmãos “em inferioridade numérica”.

O dono do bar chamou a GNR e, ao perceber isso, os amigos da vítima abandonaram o local “em passo de corrida”; os iraquianos também saíram mas de carro. Quando a patrulha da GNR chegou, os filhos do embaixador voltaram a aproximar-se de carro e queixaram-se aos agentes de “que tinham sido agredidos”. Não chegaram, contudo, a apresentar queixa, apesar de, segundo o processo, a GNR lhes ter comunicado que tinham esse direito. A embaixada do Iraque questionou, a determinada altura, a ausência de interrogatório “aos seis arguidos que iniciaram a agressão aos filhos do embaixador”. Os iraquianos tinham sinais “evidentes de agressão nomeadamente no rosto e mãos”, e “um deles coxeava”, de acordo com o depoimento de um militar da GNR. 

Foi um elemento da GNR que os levou a casa, conduzindo o veículo dos jovens, depois de um teste de álcool, feito a pedido de um deles, ter concluído que o condutor tinha os níveis de álcool no sangue acima do permitido por lei.

Os dois iraquianos terão voltado a sair de casa de carro. Segundo a descrição do Ministério Público, cruzaram-se com a vítima, que estava sozinho a pé, saíram da viatura e começaram a agredir a vítima “com violência, com pontapés e murros, atingindo-o principalmente na zona da cabeça e da face”. O jovem caiu no chão e os dois jovens “continuaram a agredi-lo com pontapés desferidos com força”.

Vizinho gritou à janela para que parassem agressões

Uma testemunha que ouviu barulho veio à janela e gritou que parassem. Mas os jovens terão continuado. Foi esta testemunha e os trabalhadores que seguiam num carro de recolha do lixo que chamaram o INEM e a GNR. A vítima foi transportada para o centro de saúde de Ponte de Sor e dali de helicóptero para o Hospital Santa Maria, em Lisboa. Foi internado na Unidade de Cuidados Intensivos Pediátrica em perigo de vida.

O condutor do carro do lixo lembrou que viu o corpo da vítima "a rodar por cima do capot, junto ao farol do lado esquerdo da viatura, caindo em seguida à frente” da mesma. Ficou com a sensação de que tinha havido atropelamento, mas não o pôde afirmar, pois não conseguiu ver a frente do carro. Ainda chegou a vê-lo a tentar fugir em direcção ao passeio, mas o jovem seria interceptado por um dos gémeos. 

Já o morador recordou que “em cima do passeio, do outro lado da estrada, estava prostrado no solo um indivíduo que não se mexia e em cima deste estava outro indivíduo que o tentava agredir”. Sublinha que “achou muito estranho que, ao ser atingido pelos dois pontapés, a vítima não se mexeu, suspeitando logo que a mesma se encontrava no momento inconsciente”. Um dos gémeos iraquianos dirigiu-se a determinada altura para uma viatura cujo condutor gritava da janela: “Go, go, go.” Todavia, o morador afirmou que não tinha óculos e, por isso, não conseguiu reter as características físicas dos dois agressores.

A própria vítima diz no auto de inquirição de 14 de Setembro que se recorda “parcialmente dos acontecimentos” – não se recorda, de todo, das agressões físicas, nem sequer de ter sido abordado pelos iraquianos. Mas lembra-se da luta entre os seus amigos e os dois gémeos no Bar Koppus, embora não saiba dizer quem a começou. As agressões provocaram várias lesões ao jovem, como se pode ler nos relatórios do Instituto Nacional de Medicina Legal: entre eles traumatismo crânio-encefálico grave ou fractura na parede externa da órbitra direita, bem como fractura dos ossos do nariz.

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