Morreu o misterioso William Onyeabor, um visionário relutante

A sua vida esteve envolvida num manto de mistério que nem a redescoberta da sua música conseguiu eliminar. Facto comprovado é que, entre 1977 e 1985, gravou uma obra que causa espanto. A morte chegou aos 72 anos na sua cidade, Enugu, na Nigéria.

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Onyeabor nunca tocou ao vivo, o estúdio era o seu centro criativo, o seu habitat natural DR

William Onyeabor terá estudado cinema na União Soviética, e depois regressado ao país de nascença para fundar um estúdio de cinema na sua cidade, Enugu, no Sudeste da Nigéria. Ao mesmo tempo, montou um estúdio musical onde, entre 1977 e 1985, gravou álbuns de afrobeat futurista, de funk que prenunciava a house em desenvolvimento, paralelamente, em Chicago – os sintetizadores que utilizava, dizem as muitas lendas que rodeiam o seu percurso, teriam sido embarcados para Enugu desde a União Soviética ou resultado do seu contrato de representação na Nigéria da marca de sintetizadores Moog. O mais provável é que a maior parte destes factos, indispensáveis à lenda construída à sua volta, nunca venha a ser confirmada.

Esta quarta-feira, porém, chegou uma triste certeza. O seu filho mais velho, Charles Onyeabor, confirmou esta quarta-feira que o pai morreu pacificamente em casa, dia 16 de Janeiro, aos 72 anos. A sua vida continuará envolvida num manto de mistério, para o que contribui o facto de, mesmo no seu período de grande actividade, entre o final dos anos 1970 e o início da década seguinte, a circulação dos seus discos, auto-editados, se circunscrever maioritariamente à região envolvente a Enugu. Além disso, em 1985, a sua vida transformou-se por completo, quando abandonou a música para se dedicar a espalhar a mensagem de Cristo.

Em 2013, porém, descobrimo-lo com espanto, quando a Luaka Bop de David Byrne editou a colectânea Who is William Onyeabor?. Espanto pelo carácter visionário da música e espanto por, em tempos de exposição total via Internet, ser praticamente impossível confirmar quaisquer factos sobre o seu percurso. Tínhamos a música, admirada por nomes como o supracitado fundador dos Talking Heads ou por Damon Albarn, dos Blur. E tínhamos, no seu palácio em Enugu, o homem que a criara e que, confrontado com a redescoberta das suas canções ou com as críticas elogiosas publicadas na imprensa de todo o mundo, respondia com aparente desinteresse – preferia que dedicassem o seu tempo a ler a Bíblia e a falar de vida de Cristo em vez de divulgarem a sua obra musical.

Em entrevista ao Ípsilon quando da edição de Who is William Onyeabor?, Eric Welles-Nystrom, manager da Luaka Bop, dava conta da impossibilidade de resolver o mistério à volta de Onyeabor. “Não o ficamos a conhecer melhor de cada vez que o visitamos. Podemos passar uma semana com ele e ficar só a ver televisão cristã e a ouvi-lo falar sobre Deus. Mas depois há um momento em que fala de outra coisa e aprendes algo." O que sabemos é que, ao longo de oito anos, Onyeabor, que se dedicava à exploração de uma grande propriedade na sua cidade natal – onde existe uma rua com o seu nome –, criou música que era uma vibrante confluência de ritmos modernos nigerianos e invenção electrónica de olhos postos no futuro. Nela, cruzavam-se os ritmos orgânicos que Tony Allen patenteou como base do afrobeat com programação em caixas de ritmo que seriam a vanguarda musical em Nova Iorque, Chicago ou Detroit. Nela, versos curtos abordando temas religiosos e activismo político eram cantados por Onyeabor e dobrados por coro feminino, enquanto sintetizadores, órgãos e guitarras rodopiavam à sua volta. À época, alguma imprensa na Nigéria elogiou-lhe a sofisticação das produções. Na televisão local também era possível vê-lo de tempos a tempos – ele próprio, diz-se, financiava a exibição dos vídeos. O seu habitat natural era o estúdio e, segundo as investigações feitas pela equipa da Luaka Bop, nunca terá tocado ao vivo.

O máximo que conseguimos aproximar-nos dele, além do que deixou registado em canções como Atomic bomb ou Body and soul, surge no documentário Fantastic Man, realizador pela Noisey. Rodeamo-lo através de conterrâneos que recordam velhos discos e os mitos de sempre ou de músicos seus contemporâneos que lhe elogiam o carácter visionário da música. Rodeamo-lo e rodeamo-lo sem nunca o vermos realmente. Como habitualmente, rejeitou ser entrevistado – a excepção foi uma conversa para a BBC6, em Dezembro de 2014 –, mas abriu as portas da sua casa para as câmaras. A equipa da Noisey deparou-se então com uma escadaria no átrio de entrada da mansão, onde se alinhavam um sintetizador Moog e fotos de Onyeabor nos seus tempos de músico e na vida que se seguiu, que devotou à palavra de Deus.

A compilação Who is William Onyeabor? teve um grande impacto na altura da sua edição, surgindo em destaque em diversas listas de álbuns do ano (a Time, por exemplo, incluiu-a no seu top 10 em 2013). E a sua música foi levada a palco por uma superbanda onde encontrávamos David Byrne, Damon Albarn, Keke Okereke, dos Bloc Party, Alexis Taylor, dos Hot Chip, Pat Mahoney, dos LCD Soundsystem, o trio sul-africano Mahotella Queens ou Money Mark, o músico e produtor associado aos Beastie Boys – Onyeabor, naturalmente, recusou participar.

Para ele, a música era uma parte da vida que ficara encerrada no passado. Ainda assim, não terá ficado indiferente à renovada atenção dada às suas canções, nas mais diversas latitudes, tantos anos depois. Na entrevista à BBC6 anunciou planos para voltar às gravações. O rumo que estas seguiriam tinha propósito definido. “Só crio música que possa ajudar o mundo."

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