Mais do que nunca, Washington prepara-se para ser campo de batalha política

Donald Trump toma posse na sexta-feira e já é o Presidente mais impopular dos últimos tempos. Não há margem para qualquer estado de graça.

Foto
A tomada de posse vai decorrer na escadaria do Capitólio, em Washington, D.C. Reuters/CARLOS BARRIA

Washington D.C., a capital federal dos EUA, é uma cidade conhecida por ser cruel e inclemente para os que não se adaptam ao cosmos político que a domina. Em torno do Capitólio e do Memorial a Abraham Lincoln desenvolveu-se uma indústria de gabinetes de consultores, assessores, estrategas e publicitários, que se alimenta do jogo democrático. A tomada de posse de um novo Presidente costuma, tradicionalmente, providenciar uma trégua no ambiente ultracompetitivo do Distrito Federal – democratas e republicanos tentam mostrar união em torno do novo líder. A cinco dias do momento em que Donald Trump irá pousar a mão na Bíblia e jurar fidelidade à Constituição, é possível dizer que a pacificação será substituída pela divisão.

A cerimónia da tomada de posse de Trump, na sexta-feira, pode revelar-se um retrato daquilo que será os primeiros tempos do seu mandato – polarização, crispação e intolerância. Durante o fim-de-semana, mais de duas dezenas de congressistas democratas anunciaram que não vão estar presentes nas cerimónias, como forma de protesto. A decisão não tem precedentes na História recente dos EUA. Mitt Romney, candidato derrotado em 2012, não esteve na segunda tomada de posse de Barack Obama, mas a decisão não foi acompanhada de qualquer crítica ao Presidente reeleito.

O rosto da contestação não podia ser mais simbólico. O congressista democrata da Georgia, John Lewis, um veterano das lutas pelos direitos civis dos negros, participante nas Marchas de Selma, em 1965, disse não reconhecer Trump como um “Presidente legítimo” por causa da conclusão dos serviços secretos norte-americanos de que o Governo russo interferiu na campanha eleitoral para o favorecer.

“Penso que os russos participaram ao ajudar este homem a ser eleito e ajudaram a destruir a candidatura de Hillary Clinton”, disse Lewis, numa entrevista à NBC. O congressista eleito pela primeira vez em 1986 disse que a tomada de posse de Trump será a primeira cerimónia em Washington a que vai faltar. “Não podemos estar em nossa casa, quando algo que sentimos ser errado lá entra.”

Ao questionar frontalmente a legitimidade da eleição de Trump, Lewis quebrou a prudência que imperava entre os dirigentes políticos de ambos os partidos, mesmo entre os grandes críticos do Presidente eleito. Por exemplo, o senador republicano John McCain, um dos que mais tem promovido o apuramento da interferência nas eleições, garantiu, durante uma audiência no Senado com os chefes das agências de informação, que a legitimidade da vitória de Trump não estava em causa.

A fúria de Trump não se fez esperar e prolongou-se em três publicações no Twitter. "O congressista Lewis devia passar mais tempo a resolver os problemas do seu estado, que está péssimo e a desintegrar-se (para não dizer que está infestado de crime) em vez de estar a levantar falsos testemunhos sobre o resultado das eleições". "Só conversa, conversa, conversa — mas zero de acção. Triste".

Nas horas que se seguiram, o desfile de democratas a anunciar a sua ausência da tomada de posse não parou. Muitos admitiram que o faziam por solidariedade com Lewis, embora outros congressistas tenham apontado as nomeações que Trump fez para a sua Administração e as suspeitas de interferência russa como motivos.

“Após uma longa ponderação, baseada na leitura do documento confidencial sobre a pirataria russa e a candidatura de Tump, a forma como lida com os seus conflitos de interesse, e os seus tweets ofensivos contra um herói nacional, John Lewis, não irei participar” na cerimónia, afirmou o congressista do Wisconsin, Mark Pocan.

“Não irei participar na tomada de posse de Donald Trump. Quando se insulta John Lewis, insulta-se a América”, disse a congressista do estado de Nova Iorque, Yvette Clarke. Foram poucos os republicanos a manifestarem-se publicamente sobre o assunto. Um deles, o senador Ben Sasse, deixou no Twitter o seu apoio a Lewis dizendo que a "conversa" do congressista mudou o mundo.

Fugir ou resistir?

O clima aponta para uma polarização da política norte-americana que pode criar um ciclo crescente de recriminações. Ao Guardian, o dramaturgo Robert Schenkkan encara a tomada de posse como “um dia profundamente divisivo”. “Haverá aqueles que estão exultantes porque sentem que andaram a vaguear no deserto nos últimos oito anos, mas a maioria do país sente algo de diferente”, diz.

Para o lado derrotado – os democratas e sectores mais moderados dos republicanos – será um dia de escolhas difíceis. Entre assessores, comentadores e estrategas, muitos preferem estar longe de Washington. “Quando se perde é sempre difícil ver a festa da vitória do outro lado”, diz ao Politico o assessor do Partido Democrata, Doug Thornell, que vai passar o dia numa festa de aniversário em Nova Orleães.

Para outros, o momento é sobretudo de resistência activa. Durante os próximos dias não vão faltar acções de protesto contra Trump promovidas por várias organizações sociais – pelo menos 30 grupos fizeram pedidos de autorização para organizarem manifestações antes e depois da tomada de posse, diz o Guardian.

A tomada de posse acontece depois de um dos períodos de transição mais conturbados da História recente. A par dos relatórios que sugerem envolvimento russo na campanha, a própria composição da Administração Trump é encarada com desconfiança – há muitos multimilionários, negacionistas das alterações climáticas, um procurador-geral acusado de racismo, críticos da escola e saúde públicas, entre outras nomeações polémicas. Há ainda a controvérsia que rodeia os potenciais conflitos de interesse causados pelas vastas ligações empresariais de Trump e a nomeação do genro para conselheiro presidencial.

Tudo isto talvez explique que Trump chegue ao dia um da sua presidência como um dos mais impopulares chefes de Estado de sempre. De acordo com uma sondagem do instituto Gallup, 51% dos norte-americanos desaprovam o seu futuro líder – quando tomou posse, Barack Obama tinha uma taxa de aprovação de 83% e George W. Bush recolhia apoio de 61% do eleitorado.

Sugerir correcção
Ler 11 comentários