Lugares em estado latente

Às vezes, a invisibilidade dos edifícios e dos lugares é física, outras é social e até religiosa. Uma viagem de três dias com arquitectos, académicos e artistas acaba numa exposição a inaugurar no Verão. Porque os lugares são sempre construções pessoais e contam histórias, porque a ruína faz pensar.

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Panorâmico de Monsanto, Lisboa Rui Gaudêncio
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O Panorâmico de Monsanto, projecto de Chaves da Costa (1968), está hoje completamente ao abandono, apesar da soberba vista sobre Lisboa Rui Gaudêncio
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Maria Rita Pais e Luís Santiago Baptista não queriam fazer uma viagem tradicional pela obra de um arquitecto conhecido, visitando projectos-chave de Fernando Távora, Manuel Tainha ou Nuno Teotónio Pereira. Queriam pegar numa ideia que combinasse os universos de referência de ambos e a partir dela construir um percurso que pudesse motivar leituras diversas. Ela sempre trabalhou a partir da experiência de habitar uma casa, um espaço; ele sempre se sentiu fascinado pela arquitectura não construída, utópica, pelo que não se vê.

“Pegámos nestas duas coisas e começámos a pensar num programa que reflectisse o tempo e o contexto da arquitectura, que virasse o foco para a questão da experiência e da representação”, diz Luís Santiago Baptista, arquitecto e professor universitário, acrescentando que a obra em si, qualquer que seja, não depende apenas das suas características intrínsecas, depende também da imagem que dela temos: “Uma visita a um edifício nunca é neutral, é sempre alterada por narrativas reais ou ficcionadas, pela memória, pelas representações a que temos acesso.”

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Pedreira em Vila Viçosa, espaço que Nuno Cera descreve como “espécie de arranha-céus invertido que ao mesmo tempo parece romano, antigo” nUNO cERA

Só depois de determinado o foco é que os dois comissários foram à procura dos lugares que poderiam explorar numa visita de três dias com arquitectos, artistas plásticos, programadores de museus, geógrafos, professores, críticos e outros profissionais interessados em património e nas suas implicações sociais. Uma visita que agora, e depois do apoio recebido da Direcção-Geral das Artes (DGArtes), vai dar origem a uma exposição no Teatro Thalia, em Lisboa, com inauguração marcada para o Verão.

“Queríamos que os sítios escolhidos mostrassem o avesso da nossa cultura arquitectónica, que é a que está inscrita, documentada. Procurámos, na sua maioria, sítios cuja história e desenho não conhecêssemos”, explica Maria Rita Pais, que tem centrado boa parte da sua investigação académica na habitação unifamiliar portuguesa da segunda metade do século XX.

O resultado foi aquilo a que chamaram a "Viagem ao Invisível", um percurso que passou por Lisboa, Setúbal, Caxias, Vila Viçosa, Évora, Arrábida e Caldas da Rainha, parando em casas particulares habitadas e devolutas, em minas e estaleiros desactivados, em grandes pedreiras tomadas pelos pássaros ao fim da tarde e conventos onde as mulheres não são autorizadas a entrar há mais de 400 anos (e continuam a não ser, mesmo com hora marcada).

A “invisibilidade” a que o tema desta visita, que nasceu de um concurso da secção sul da Ordem dos Arquitectos, se refere, explicam, pode envolver uma componente física, claro, mas pode também ser de ordem económica, social e cultural. Muitos dos espaços por onde passa foram, de alguma forma, esquecidos, outros, como a Cartuxa de Évora (Filipe Terzi e Giovanni Vincenzo Casale, 1598), são intencionalmente arredados da vista. Nuns, as pessoas e as suas histórias contam muito – é assim na Casa Lino Gaspar (arquitecto João Andresen, 1953-55), onde vivem ainda e há mais de meio século os proprietários originais –, noutros, tudo se degrada quase sem testemunhas.

O Estaleiro Naval da Margueira (1963); o Hotel das Arribas, na Praia Grande, projecto de Raul Tojal e Manuel Carvalho (1961); o Panorâmico de Monsanto, de Chaves da Costa (1968); a Aldeia da Luz, de João Figueira (2002); o Palacete da Comenda, de Raul Lino (1902); o panóptico do Hospital Miguel Bombarda, de José Maria Nepomuceno (1896); o Centro Comercial da Mouraria, de Carlos Duarte e José Lamas (1982); uma pedreira em Vila Viçosa e as Minas de São Domingos estão entre as 15 paragens deste percurso que está longe de ser um roteiro convencional. “A viagem nunca foi um fim em si mesmo, mas um instrumento para que os artistas e os investigadores começassem a trabalhar, descobrindo a sua invisibilidade num ou em mais do que um dos lugares por onde passámos”, diz Maria Rita Pais.

Na sua cabeça e na de Luís Santiago Baptista esteve sempre a possibilidade de vir a fazer uma exposição, segunda fase de um projecto que seria, também ele, dividido em dois blocos de trabalhos: de um lado, o dos convidados ligados às artes, os que foram à viagem (Nuno Cera, Ricardo Castro, Tatiana Macedo) e os que não foram (João Onofre, Ricardo Jacinto); do outro,  investigadores como Álvaro Domingues, geógrafo e professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, chamados a reflectir sobre todo e qualquer tema que os lugares visitados lhes suscitassem.

“São edifícios em estado latente, alguns deles à espera de serem vendidos, outros de recuperação”, diz Luís Santiago Baptista, “mas são também espaços de ficção e de autoficção. As narrativas que sugerem, por mais informação que tenhamos, são sempre uma construção pessoal”. Assim como as reflexões que motivam.

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A Casa Lino Gaspar (1953-55) é um projecto de João Andresen. Nesta moradia que é um marco da arquitectura moderna em Portugal vivem ainda os proprietários originais, testemunhas de “tempos mais que perfeitos” nUNO cERA

Um rasto quase apagado

Todos estes lugares “existem na sombra”, escreveram os comissários na candidatura aos apoios pontuais da DGArtes, “inacessíveis ou inapreensíveis”, mas fazendo parte de uma memória colectiva, mesmo que nalguns casos só indirectamente e com rasto difuso, quase apagado.

Além de convocar vários tipos de invisibilidade, o percurso fez a ponte com o cinema e as artes, tudo porque cada um dos sítios visitados carrega narrativas múltiplas, umas factuais, com  datas e protagonistas, outras imaginadas, mas nem por isso menos verdadeiras. Foi nesse movimento de associar o real, o que se pode ver e experimentar, ao ficcionado, ao construído, que os comissários sublinharam a relação que existe entre o Hotel das Arribas (Sintra) e o cinema de Wim Wenders (O Estado das Coisas); entre o Panorâmico de Monsanto, outrora misto de restaurante, discoteca e miradouro, hoje um edifício em escombros com um forte impacto cenográfico, e o documentário Ruínas, de Manuel Mozos; entre o panóptico do Miguel Bombarda – pavilhão de alta segurança desta unidade psiquiátrica, reservado aos doentes perigosos  – e Recordações da Casa Amarela, de João César Monteiro, cartão-de-visita dessa personagem inesquecível colada à pele do realizador, João de Deus; entre as pedreiras de Vila Viçosa e os registos do fotógrafo canadiano Edward Burtynsky.

A intenção, garantem os comissários, foi cruzar várias disciplinas que concorrem para a explicação de um lugar e, depois, deixar que as pessoas o experimentassem. Dessa experiência faz parte, por exemplo, o som do vento a entrar pela grande nave de um dos principais edifícios do Estaleiro da Margueira, na margem sul do Tejo, com a cobertura a ameaçar ruir, trabalhos de Vhils nas paredes, quadros eléctricos abertos, cadeirões de veludo abandonados e cadáveres de navios e submarinos ainda na doca.

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Ricardo Castro demorou duas semanas a dar por terminado o diário gráfico que começou a fazer ao longo dos três dias da “Viagem ao Invisível”. Vai mostrá-lo, em vídeo, na exposição nUNO cERA
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Na Margueira (antiga Lisnave), Álvaro Domingues, que dedica grande parte do seu trabalho de investigação à geografia humana, sentiu-se atraído, como sempre, pela “arquitectura que é pura função”, mesmo quando não se sabe para que serve determinada estrutura ou equipamento. “O cenário de destruição, a escala, os avisos nas paredes... Um absoluto estranhamento que é totalmente independente de qualquer conversa sobre a pós-modernidade, os modelos industriais e o descontentamento que o ‘desenvolvimento’ trouxe, depois de tantas promessas.”

Para este geógrafo que detesta discursos saudosistas, sobretudo quando se fala do mundo rural em Portugal, estaleiros como o outrora ocupado pela Lisnave são “descontinuidades” que mostram que o processo histórico não é uma “auto-estrada”.

“Há pessoas que gostam de olhar para a Lisnave e para a Setenave e dizer que são reflexo de uma espécie de disfuncionalidade persistente que é muito portuguesa. Eu não acredito nisso. Há coisas destas por toda a parte – não são ruínas dignas, como dizermos ‘aqui houve um convento, um pelourinho’, mas também têm que ver connosco.”

A Álvaro Domingues comove-o mais o cemitério da Aldeia da Luz, totalmente transladado aquando da construção do novo núcleo, projecto em que esteve envolvido – “tem uma enorme dignidade, senti que foi ali que a Luz ficou” – do que os estaleiros decrépitos à espera de investidores para levar avante um ambicioso projecto de reabilitação da zona ribeirinha ou o grande palacete da Quinta da Comenda, obra de Raul Lino para Ernest Armand, conde e diplomata francês, onde terão chegado a estar instalados o escritor americano Truman Capote (A Sangue Frio) e Jacqueline Kennedy com os filhos, depois do assassínio de JFK .

“Tudo naquele palacete é exagerado, desajustado. E as histórias que se contam sobre ele não me interessam. A única coisa que ali marca é o lugar, o mar da Arrábida”, argumenta este professor da Universidade do Porto, que, a propósito da viagem e da exposição, planeia agora escrever sobre a “diversidade de sentidos” que a ruína carrega, contrariando a “doença profissional dos cientistas” que os leva a olhar para as coisas como se fossem documentos desprovidos de qualquer registo sentimental.

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Uma casa com testemunhas

É por causa desse lado mais afectivo, se quisermos, que tanto Álvaro Domingues como Ricardo Castro, que integra o colectivo Homem do Saco e foi outro dos convidados da Viagem ao Invisível, se deixaram tocar pelos donos da casa que João Andresen desenhou em Caxias, Lino Gaspar e Maria Eduarda Medeiros.

Quem olha da rua, esta moradia encaixada no terreno no Alto do Lagoal, onde o casal vive desde 1955 e onde educou os filhos, passa facilmente despercebida. É no interior que ela se revela, ganhando a paisagem. Sentado numa poltrona junto a uma das enormes janelas viradas para o rio cujos estores nunca se fecham, Lino Gaspar conta como escolheu ele o arquitecto que havia de a desenhar – “Eu andava à procura de alguém que fizesse um projecto para a casa, mas parecia que todos os arquitectos que interessavam andavam a desenhar montras na Baixa [de Lisboa] e no Chiado... Depois encontrei a Sophia [a poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen], que eu conhecia bem, e ela sugeriu-me o irmão” – e por que razão não se arrepende de o ter feito.

Nascida de um diálogo aberto e permanente entre o autor do projecto e o cliente, a Casa Lino Gaspar é um dos marcos da arquitectura moderna em Portugal e está hoje praticamente como estava em 1955 – as estantes da sala que Andresen desenhou repletas de livros, as cadeiras, os puxadores das portas, a lareira no centro da sala que no Verão se transforma em fonte... “Escolhi-o depois de ele me mandar dois desenhos desta sala – um de Inverno e outro de Verão. Era um arquitecto formidável. A casa ficou exactamente como eu queria.”

Lino Gaspar e Maria Eduarda Medeiros recebem quem chega com uma generosidade enorme e, no meio daquela casa, diz Álvaro Domingues, são como um “símbolo de tempos mais do que perfeitos”, testemunhas que atestam a veracidade de tudo aquilo que está à nossa volta quando paramos no jardim e olhamos a paisagem à procura do Forte de São Julião da Barra.

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Criados no século XIX, os edifícios das Caldas nunca deram apoio às termas, como era suposto. Acolheram bóeres e foram sede de associações, quartel militar e escola secundária. Agora estão cheios de lixo hospitalar e a cair nUNO cERA

Ricardo Castro desenhou o casal, assim como o dono do restaurante das Minas de São Domingos, homem pragmático sempre pronto a servir a quem entra o tradicional cozido de grão. “Não queria fazer uma coisa contemplativa, de desenho de paisagem, nem havia como. Concentrei-me muito em registar as pessoas que iam no autocarro ou que encontrávamos ao chegar”, diz, falando do diário gráfico que fez ao longo da viagem e que vai mostrar em stop motion na exposição, em cujo catálogo também estará envolvido.

Tanto o catálogo como o diário deverão ter uma boa dose de técnicas artesanais, já que é essa uma das marcas do atelier/oficina a que Castro pertence e que por regra se dedica à publicação de cartazes e pequenas edições com recurso à serigrafia, à gravura e à tipografia. “Tive de acabar o diário a posteriori porque era muita informação e muito pouco tempo para a trabalhar em cada um dos sítios”, explica, acrescentando que ao chegar demorou duas semanas a dá-lo por terminado e que depois o arrumou na estante da sua casa, onde ainda está.

Ricardo Castro concentrou-se, também, em pormenores de cor, de texturas, e em anúncios, reclames, mensagens e avisos afixados nas paredes, espalhados pelos estaleiros da Lisnave ou pelos edifícios ligados ao hospital termal das Caldas da Rainha, repletos de camas articuladas, computadores obsoletos, incubadoras partidas e caixas e caixas de consumíveis de laboratório ainda por abrir. “Fiz uma espécie de levantamento tipográfico dos lugares por onde passámos e agora espero poder usá-lo no catálogo”, diz. “E andei a desenhar uma série de objectos perdidos que por lá encontrei, coisas que não se vêem à partida mas que, para mim, acabam por marcar esses lugares.”

A ruína é uma contradição

Os Pavilhões do Hospital Termal das Caldas da Rainha, de Rodrigo Maria Berquó, também estão entre os locais que o artista Nuno Cera elege do naipe de 15 propostos pelos arquitectos-comissários que conceberam este percurso pelo inacessível. Sempre de máquina e tripé ao ombro, Cera documentou toda a viagem em filme e fotografia: “Fui muito convencional, não havia tempo. Filmei planos estáticos que funcionam como fotografias animadas. O resultado é uma série de lugares quase sempre sem som, ordenados segundo a cronologia, em que eu intervenho sobretudo através do trabalho de edição.” Parte do que este fotógrafo e artista plástico produziu está agora a ser mostrado no Luxemburgo, no Instituto Camões, na exposição Vestiges du Réel (até 8 de Fevereiro).

Num dos filmes já terminados estão precisamente os edifícios das Caldas, fechados desde 2011 por causa do risco de ruína e agora integrados no programa Revive, “cenário surreal” cujos corredores se percorrem pisando revistas sobre o Portugal colonial e fichas de doentes, numa devassa incompreensível da vida privada.

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Os comissários da viagem e da exposição, os arquitectos Maria Rita Pais e Luís Santiago Baptista, fotografados dentro do Panorâmico de Monsanto Rui Gaudêncio

Criados no século XIX para dar apoio às termas, nunca serviram o seu propósito inicial. Em 1901/1902, por exemplo, acolheram 350 refugiados bóeres (descendentes de colonos que se estabeleceram na África do Sul) que fugiam da guerra contra os ingleses, e depois foram quartel militar, escola secundária, sede de associações, biblioteca, posto de turismo e redacção do jornal Gazeta das Caldas. “Entramos e não queremos acreditar. É uma sensação estranha... Uma sensação que não é física, ao contrário do que acontece nas pedreiras de Vila Viçosa, cenário quase pós-apocalíptico, espécie de arranha-céus invertido que ao mesmo tempo parece romano, antigo.”

Da impressionante pedreira com a piscina verde-esmeralda à clausura da Cartuxa, com o padre Antão do outro lado do portão cheio de recortes, passando pela aldeia à beira da albufeira de Alqueva, que, com as suas ruas desertas e as árvores ainda por crescer, parece uma maquete, e pelo Panorâmico de Monsanto, a Viagem ao Invisível propôs um percurso ecléctico que a exposição agora promete aprofundar e diversificar.

Na cabeça ficou, por exemplo, a ideia de que a ruína é coisa mutante, sempre em aberto. Ou como diz o geógrafo Álvaro Domingues, guia não oficial desta viagem, um “registo estético de sinais contraditórios, ao mesmo tempo símbolo da eternidade e persistência dos lugares e espelho da sua decadência e transitoriedade”, espécie de “presente ausente” com um grande poder de inquietação.

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