A Quinta da Fonte não é a ruína de lugar nenhum

Reconstruir os "lugares mais bonitos" num sítio com tão poucos é o desafio das crianças e jovens do Teatro Ibisco, em Loures. Esta procura de um lugar seguro, do outro lado de um muro, é representada esta sexta-feira na Sala Polivalente da Fundação Calouste Gulbenkian.

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Ensaio de Nha Bairro, Nha Casa (Como se constrói o futuro?) Miguel Manso
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Há 12 crianças e jovens em palco Miguel Manso
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As crianças e jovens do Teatro Ibisco, em Loures Miguel Manso
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O optimismo nem sempre fez parte do dia-a-dia no bairro da Quinta da Fonte, na Apelação (Loures). O bairro tinha conotações muito próprias: crime, droga e violência. Esse já não é o bairro onde Isabel vive.

– Não me enquadro muito nesta cena, queixa-se.

Mais duas vezes de repetição e Isabel já apanhou o jeito. Repete as frases da maneira de que se lembra. Afinal as palavras são suas. Vieram da forma como ela, aos dez anos, vê o seu bairro.

– As casas não são as ruínas das casas. E este lugar também não é a ruína de lugar nenhum.

O ensaio continua. Há 12 crianças e jovens em palco – da Mariana, com cinco anos e um mês de teatro, ao Ibraim, com 18 e três anos de companhia no Teatro Ibisco. A sala de ensaios no Centro Comunitário da Apelação é o local de encontro depois das aulas. Desde Dezembro que a rotina é diária.

São os últimos dias de ensaio da peça Nha Bairro, Nha Casa (Como se constrói o futuro?) que apresentam esta sexta-feira, pelas 21h, na Sala Polivalente da Fundação Calouste Gulbenkian.

Este grupo do departamento educativo do Teatro Ibisco – Ibiskode –, a caminho do quarto aniversário, tem um modelo de criação de espectáculos incapaz de produzir resultados iguais. Quando começaram a criar a peça Quatro Pé, na qual exploraram a relação destes actores com os animais, eles perguntavam então: "Porque é que nós temos um sítio onde fazer coisas e os animais têm de estar na rua?" Destas perguntas e das improvisações criam-se histórias. Daí "o espectáculo surge naturalmente", conta Catarina Airos, a encenadora.

"Eles andavam a falar muito do bairro e dos lugares sujos. Então quis perguntar-lhes quais é que eram os lugares bonitos", prossegue a encenadora. Falaram do jardim e do quarto, da biblioteca, do teatro, do campo de futebol e da orquestra. Divididos em grupos, com idades e origens diferentes, questionavam este lugar onde habitam. “Como é que podemos construir uma casa? E um bairro? Como é que conseguimos construir um futuro? O incrível é que para eles é simples: basta terem um lugar seguro”, diz Catarina.

A busca desse lugar faz-se no palco, onde há um muro como o que existia entre a Quinta da Fonte e a Quinta do Mocho, em Sacavém, a separar grupos rivais, a perpetuar a violência. Dividia os “de cá” e os “de lá” – uma realidade que já não conheceram. “Para estas crianças há outros muros”: a forma como falam deles nos jornais, como são vistos por Lisboa. Há outros muros na escola e em casa.

“Falar sobre o muro foi a sua forma de dizerem que podem reconstruir o bairro. Se o fizeram aqui, as pessoas podem fazer por aí.” Catarina elogia-lhes a coragem de se verem como uma referência, "porque a geração anterior a eles cresceu exactamente ao contrário: a terem de andar à procura de referências e nem sempre terem as melhores”.

Este espectáculo não é uma obra de teatro no sentido literal, acredita a encenadora. É um exercício de debate e de desenvolvimento de um pensamento. “É muito optimista. Apesar de eles terem opiniões muito diferentes, acreditam que amanhã vai ser um dia melhor”, conta.

Não era nada fácil ser kode aqui

Kode é a palavra crioula para "filho mais novo". É assim que o grupo é chamado. Desde 2013, com o apoio do Partis – o programa artístico de inclusão social da Gulbenkian –, têm a oportunidade para dizer de si e ter uma plateia que os oiça. Isabel sabe que outros como ela, na escola por exemplo, “não são ouvidos da mesma maneira”.

Antes, não era nada fácil ser kode aqui. “Agora é melhor”, diz Ibrahim. É um lugar seguro? “Há alguns lugares assim.” É um lugar bonito? “Este bairro melhorou muito. Tem pessoas boas, muito unidas.” Lembra-se das festas a que ninguém falta e da arte urbana que lavou a cara ao bairro. “Antes as pessoas diziam que este era o bairro dos negros e da droga. Agora dizem ‘a Apelação, dos graffiti”, repara Rafael.

Ibrahim tem os olhos tão escuros como a pele. O olhar mais expressivo da sala. As suas falas são em crioulo – a língua que fala em casa, em que pensa. A que lhe é mais natural. Não faria sentido que fosse de outra forma.

Na sala ouve-se o zumbido das luzes. O palco é pequeno, com cortinas pretas nas laterais. A peça começa sem ninguém dar ordem. A primeira cena é a mais dura. Um homem bate numa mulher. Ela diz que também é dali. “Tu até me podes vencer na violência, mas nós podemos vencer juntos e destruir este muro”, é a fala de Inês, uma das mais velhas.

“Têm de ajudar o outro a passar o buraco que ficou no muro.” Nas indicações de Catarina nunca se fala em gestos, mas em intenções. Ajudar pode ser estender os braços, proteger a cabeça, dar a mão. “Tenho a certeza de que os assuntos de que falam aqui os tornam crianças mais conscientes, que estão mais curiosas para entender o mundo e falar sobre ele", acredita a encenadora.

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