Saudades de amabilidade

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

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Adriano Miranda

Se é compreensível que quem disponha de um pedacinho de espaço público para falar de palavras se apresse a apontar as que tão massacradas são pela incorrecção na escrita ou na oralidade, também o pode ser que a essa pressa acudam outros casos urgentes, como o de vocábulos e expressões pouco usados, mal-amados, marginalizados por desconhecimento, embaraço ou moda, e ainda aqueles que, até bastante usados em contextos poéticos e artísticos multiformes, são-no de menos entre pessoas reais, na vida real, unidas por uma corrente que faz, a umas, dizê-las e, a outras, ouvi-las com satisfação. A mesma corrente que as faz, depois, com a mesma satisfação, inverterem os papéis de dizer e ouvir. A conversar é que alguma gente se ama.

Depois da ideia aflorada da esperança como último motor, em que não é preciso insistir muito para ser clara, é preciso salvar a ideia e a prática da amizade como primeiro, o nosso primeiro motor vital, não só porque nos deveria receber a todos no regresso a casa vindos da maternidade, mas também porque, se não está lá nesse momento nem nos anos seguintes, assim que nos apercebemos de que, apesar disso, existe, passamos a vida a procurá-la (a amizade) e a procurá-los (os amigos), a prática e os praticantes da comunhão religiosa organizada que é só minha e deles. E nesta cabem todas as religiões institucionais que não se interponham entre nós nem nos mandem perseguir uns aos outros.

Então, na falta de um processo que torne praticável a nossa religião na sucessão interminável de dias demasiado cheios ou demasiado vazios, podemos tentar evocar palavras que representem os nossos amigos e as saudades que temos deles e que, por muito habituados que estejamos a vê-las e a ouvi-las, ganham muito de descoberta e revalorização se atentarmos um pouco mais nelas.

Comecemos com “amabilidade”, que, no dicionário consultado (“Dicionário Complementar da Língua Portuguesa”, 7.ª edição, de Augusto Moreno), tem os seguintes significados: “Qualidade do que é amável; palavra ou frase amável; meiguice; carinho; delicadeza; gentileza”. O que o dicionário não diz e nos cabe lembrar é que a amabilidade, como uma das maiores obras-primas da humanidade, resultado de milénios de aperfeiçoamento civilizacional, deveria ser acrescentada a todas as listas das maravilhas do Mundo ou das realizações de Aristóteles, Platão, Pitágoras, Arquimedes, Brunelleschi, Michelangelo, Leonardo da Vinci, Rembrandt, Van Gogh, Renoir, Monet, Mozart, Bach, Beethoven, Wagner, Shakespeare, Tolstoi, Camões, Einstein, Pasteur, Fleming, Gandhi, Mary Quant e todos os outros que vejamos como o máximo de qualquer área admirável.

A amabilidade é uma atitude política concreta independente dos partidos que permite que em casa, na escola, na fábrica, no escritório, na rua, no autocarro, comboio, avião, café, restaurante, supermercado, posto de correios, centro de saúde, hospital, repartição de Finanças, balcão de atendimento do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, tribunal, cemitério sejam tratados por igual os fracos, os pobres, os doentes, os apáticos, os alienados, os desiludidos, os nervosos, os traídos, os humilhados, os ingénuos, os inocentes, os inconscientes, os demasiado escuros, os demasiado claros, os demasiado baixos, os hesitantes, os endividados, os figurantes, os sem-telemóvel, os sportinguistas, tal como se fossem estrelas, vencedores, empreendedores, determinados, grandes devedores, condutores de jipes, futebolistas apoiados por clubes, pessoas famosas e com espírito de iniciativa. A amabilidade nivela por cima, dando-nos a todos honras de pertencer a um clube exclusivo em que temos as quotas em dia e onde somos recebidos com um sorriso que não é instantâneo como o puré de batata nem automático como uma porta de elevador nem impulsionado pela mola da gorjeta gorda.

Tal como acontece com as árvores, temos de procurar a origem das palavras na raiz, assim como o seu vigor, sustentação, nutrição, regeneração. Amabilidade, amável, amigo, amizade, amante vem tudo de amor. E, chegado aqui, preciso de pedir licença para passar por cima da consagrada fórmula “all we need is love” só para alertar que os humanos também inventaram o amor egoísta e que, portanto, do que precisamos, afinal, o mais resumidamente possível, talvez seja de respeito.

Mas voltemos às palavras, para nos admirarmos um pouco da nossa falta de admiração por coisas admiráveis: se “amável” é “digno de ser amado; agradável; delicado; obsequioso; afável”, se “amigável” é “próprio de amigos; feito às boas; afectuoso” e “amigo” é “o que ama; o que tem amizade; o que estima; amásio”, então a amizade é não só uma forma de amor, mas a mais praticada. Vejamos se o dicionário concorda: “Afeição, amor, dedicação, benevolência, favor”. Concorda. Então, é tempo de o compreendermos.

Quem sabe que “amante” é “o ou a que ama; namorado ou namorada; amásio ou amásia; quem tem relações ilícitas; amador; apaixonado”, que “amásio” vem a ser “indivíduo amancebado; amante”, que “amador” pode ser “amante; apreciador; cultor curioso de qualquer arte”, mesmo que não saiba que um “amigalhaço” é um grande amigo, gostaria de ter, pelo menos, um. Como se dá o caso de várias pessoas serem minhas amigas, aproveito para lhes agradecer a amabilidade com que me têm deixado fazer parte das suas vidas, próximas e distantes, em espaço e em espírito, do outro lado do mar, do outro lado da escrita e mesmo aqui ao lado. Que saudades de cada uma delas!

Correio premente

De Mécio Barba Roxa, freguesia de Póvoa e Meadas, concelho de Castelo de Vide: “A gente cria expectativas em relação às publicações e às rubricas que vão aparecendo que nos caem no goto e depois desilude-se. É o seu caso: fala de tanta coisa, a propósito e a despropósito, e nem uma só vez o vi escrever sobre os incomparáveis benefícios da couve-roxa. Francamente!... Esperava mais…”

Estou consigo. Também eu esperava mais. Os estudos científicos norte-americanos (e há outros?...) mais recentes continuam a confirmar o que sempre souberam os lavradores portugueses: que a couve é um superalimento, principalmente quando acompanhada por feijão-vermelho, batata-branca, um fiozinho de azeite e uma rodela de chouriça ou um nada de carne gorda. Mas tenho de confessar a minha parcialidade pela penca. Não por narizes mais ou menos grandes, mas por aquela variedade de couve que acompanha as batatas e o bacalhau cozido no Natal. Trocando por miúdos, prefiro a “Brassica oleracea” nas suas variantes “acephala” (couve-penca e couve-galega), “capitata” (repolho) e “costata” (tronchuda), ao passo que o leitor prefere a “Brassica oleracea capitata rubra” (couve-roxa). Será possível convivermos bem com as nossas diferenças? É um repto que lhe faço daqui, inspirado pela solenidade do um caldo-verde que, pacientemente, me aguarda. Não o deixemos esfriar, nem o nosso relacionamento futuro.

De Bento Espírito Santo Agudo, Barroca Grande, freguesia de S. Francisco de Assis, concelho da Covilhã: “Sou mineiro, o que, na escala de dureza de vida, rebenta com a escala que o Friedrich Mos em boa hora criou e que, após o fecho do cinema local, nos entretém nestas longas noites de Inverno, a classificar e coleccionar os minerais que vamos encontrando no nosso trabalho, abrindo galerias monte adentro. Como a mina (que não vou identificar) é de volfrâmio, deixam-nos ficar com o que encontrarmos que seja de outra natureza. O engenheiro, que é estrangeiro, só nos diz: ‘Isto não é uma mina de volfrâmio? Então só quero volfrâmio!’ (e demorou-lhe alguns anos a perceber que volfrâmio era tungsténio, porque como então só queria tungsténio, durante esses doces anos podíamos trazer o volfrâmio para casa). Por isso, hoje em dia lá vamos trazendo os bolsos cheios de turmalinas, algumas esmeraldas, uns raros diamantes com que vamos estimulando o tecido empresarial local mais eficazmente do que qualquer plano nacional ou municipal. Mas a minha pergunta prende-se com outra preocupação: à medida que vamos escavando galerias cada vez mais fundas com esta maquinaria moderna, cresce entre a malta uma sensação que pode ser mais bem caracterizado se for qualificado, sem rodeios, como a de terror pânico: que a cada pancada dos martelos pneumáticos, a cada revolução das brocas, a cada explosão controlada, nos possa saltar um bosão de Higgs traiçoeiro que atravesse o capacete e nos cause uma doença incapacitante que a seguradora não cobre. Podem achar muita piada aí sentadinhos no escritório no bem-bom de uma atmosfera aquecida, mas isto aqui não é brincadeira nenhuma. Não se fala de outra coisa nas tabernas, nos cafés, nos restaurantes, nos casinos. Existe alguma app para telemóvel que detecte um bosão de Higgs como se fosse um Pokémon? É que já basta a silicose…”

Achei a sua carta muito interessante, a vários títulos. Assinalo a qualidade da sua redacção e confesso-me incompetente para lhe aplacar a angústia que expõe. Só por curiosidade: a aguardente de medronho é aí de acesso livre? É só por perguntar…

A todos aqueles leitores mais fisionomistas que já me escreveram a perguntar se sou da família do Brad Pitt, do Matt Damon e do Pierce Brosnan e aos que, com uma acuidade visual mais obnubilada, me fizeram parente do Woody Allen (essa é boa!...), esclareço que não, nem de uns nem de outro. Não voltarei ao assunto.

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