O Bochechas, a descolonização e nós

Aquilo que mais oiço contra Mário Soares é a acusação das suas responsabilidades na descolonização. Considero esse juízo incorrecto e injusto.

1. O falecimento de Mário Soares era notícia esperada. Sabia-se da fragilidade da sua saúde, desde que, há um ano, desaparecera da televisão — Mário Soares foi figura pública, activa e opiniosa, até ao último dia que lhe apeteceu. Após o recente internamento, esperava-se a qualquer momento. Foi sem surpresa que soubemos e até com algum alívio: o alívio que reservamos aos que estimamos — por se abreviar o sofrimento próprio, dos familiares e amigos mais próximos.

Na voz popular, “morreu o Bochechas”. Peço licença, com a mesma irreverência com que ele sempre lidou com os poderes e os mitos, para usar o cognome por que a generalidade dos portugueses o conheceu. Expressão de bom humor, era sinal de carinho e não de sarcasmo. Também se riu disso. Esse cognome e o sorriso cúmplice abraçam o essencial da razão por que o rodeia na hora da morte uma quase unanimidade. É um eco, novo e refrescado, da quase unanimidade que marcou a reeleição presidencial em 1991. Explica que ele tenha inaugurado, como mais ninguém poderia ter feito, aquela expressão e ideia que, desde então, nunca mais se apagou: “o Presidente de todos os Portugueses”. E é o eco popular da excepcionalidade de estatuto que, progressivamente, lhe foi sendo reconhecida.

Mais do que um “homem de consensos” (coisa insonsa, sensaborona, que todos os governantes e chefes algumas vezes têm de ser), Soares foi um líder de guinadas e de sapatadas. O que marca a sua vida são as rupturas que foi capaz de fazer, o tempo em que as fez, o modo como as fez e a determinação com que as interpretou e conduziu. Guiou-o muito a ideia de Liberdade e de Democracia, além de outras do seu campo ideológico e partidário. Mas, nesses tempos fundadores da democracia em Portugal, antes e depois do 25 de Abril, não deve haver um só português que, ao menos nalgum momento, nalgum dia, nalguma época, não se sentisse identificado com ele e não estivesse atrás dele nalgumas dessas várias guinadas corajosas e determinantes das lutas pela Liberdade.

2. Aquilo que mais oiço contra ele é a acusação das suas responsabilidades na descolonização. Considero esse juízo contra Mário Soares incorrecto e injusto. Do que conheci e vivi do processo de descolonização, bem como do que tenho lido, o mais certo é “a culpa morrer solteira” — e, aqui, de modo compreensível.

Se há um momento em que um país necessita, crucialmente, de poder e de ordem, esse momento é aquele em que entende descolonizar parcelas do seu território. A transferência de poderes de uma autoridade para outra exige que a autoridade exista. Sem isso… nada! É como na passagem do testemunho em corrida de estafetas: mão firme a passar, mão firme a receber.

Ora, a seguir ao 25 de Abril em Portugal, o que havia era tudo menos mão firme: não havia autoridade, nem poder, nem ordem. E tudo se foi tornando pior, à medida que mergulhámos na loucura desenfreada do PREC. Realizar uma descolonização neste contexto só podia dar o que deu. E, todavia, tão-pouco se podia impedi-la ou adiá-la, porque o que determinara a revolução tinha sido a revolta dos militares contra a continuação da guerra. Só se podia adiá-la, mantendo a guerra nalguma medida; e a guerra não podia continuar.

Mário Soares, como a generalidade dos políticos civis da época, pouco podiam influenciar os acontecimentos. Maior será a responsabilidade dos político-militares de então, que detinham poder efectivo e o comando das tropas. Mas mesmo estes têm a responsabilidade limitada, pelas contradições entre todos eles, pela relatividade do “comando” ou pela rendição espontânea de unidades no terreno, tornando impossível qualquer condução política propriamente dita. Em suma: o país vivia em completa desordem, a descolonização desenvolveu-se em completa desordem. Um desastre na verdade, de que muitos povos pagaram preço caríssimo.

Olhando a antes do 25 de Abril, diz-se que Marcello Caetano não democratizou mais e mais depressa, por causa da guerra e do Ultramar. Recearia um desastre, a incapacidade de conduzir os acontecimentos mal abrisse uma porta. Se esses eram os receios a partir de um poder estabelecido, não surpreende a dinâmica ocorrida quando ruíram os diques e o poder estava na rua.

Creio que Mário Soares aspirava diferente — e não é segredo que tinha alguma proximidade com Spínola, cuja visão era moderada e também não teve a menor oportunidade. Soares era favorável à independência dos territórios ultramarinos — no que divergia do federalismo de Spínola — e queria essa independência com democracia, algo bem diferente do que a circunstância histórica impôs. Por aquilo que foi a sua vida, não podemos pôr em dúvida que fosse esse o seu sonho, ambição e propósito: que cada país do que viria a ser a CPLP seja uma democracia livre para felicidade do seu próprio povo e exemplo nas suas regiões e no mundo. É por isso que Soares, além da amizade com o Brasil, se alegrava com os progressos democráticos de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste e seguiu sempre com atenção e solicitude os desenvolvimentos políticos em Angola, em Moçambique e na Guiné-Bissau. Até se respirar Liberdade e Paz em todo o lado.

3. Nos últimos anos de vida, Mário Soares nunca virou a cara a qualquer combate a que se sentisse desafiado. Sofreu derrotas, algumas amargas. Mas nunca quebrou, nem baixou os braços, nem desistiu. Honrou a irreverência de sempre.

Bastas vezes, idoso, mas vibrante, esteve à frente dos mais novos do seu campo. Interpretou várias guinadas e outras tantas sapatadas sobre novos problemas e desafios do nosso tempo português, europeu e mundial. Foi um espírito vivo e desperto, enquanto figura pública.

A maior parte das vezes, devo dizer, eu não estava de acordo. E, por vezes, à minha volta, ouvia isto: “Já devia calar-se.” Não, nada disso. Usou até à última gota o bem que mais distribuiu: a liberdade. O Bochechas merecia. Em verdade, merecemos todos. Mário Soares em especial.

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