O filme de uma família feliz (tanto quanto possível)

Bright Lights, o documentário sobre Debbie Reynolds e Carrie Fisher, é um requiem por uma Hollywood que já não existe e por uma família que lhe sobreviveu.

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Debbie Reynolds teve dois filhos com Eddie Fisher: Carrie e Todd, co-produtor deste documentário HBO
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Carrie Fisher e Debbie Reynolds HBO
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Debbie Reynolds com Carrie Fisher HBO

É um daqueles ditados que se puxam da manga à primeira ocasião, com maior ou menor propriedade, mas que não deixam de ter alguma verdade lá dentro (como a maior parte destes ditados): nunca se deve voltar ao sítio onde se foi feliz, sob pena de se perceber que a memória nos enganou e que, na verdade, nunca ali fomos felizes, ou então que de facto fomos ali felizes e a nossa vida nunca mais vai recuperar esse fulgor. Ao longo de Bright Lights, o documentário de Alexis Bloom e Fisher Stevens que passa esta terça-feira no canal TVCine 2, às 22h, percebemos que Debbie Reynolds e Carrie Fisher, mãe e filha, representam elas próprias os dois lados do dilema, e que resolvê-lo implicou fazer as pazes com os seus passados.

Rodado ao longo de dez meses em 2014 e 2015, integrando imagens de arquivo familiares, Bright Lights estava pronto desde Maio último, altura em que foi estreado no Festival de Cannes, e aguardava apenas a data de emissão do canal HBO – que viria a ser antecipada face à morte súbita de Carrie, aos 60 anos, no passado dia 27, das sequelas de um problema cardíaco ocorrido durante uma viagem de avião entre Londres e Los Angeles, e de Debbie, aos 84 anos, de um AVC ocorrido 24 horas após a morte da filha.

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Inevitavelmente, ver Bright Lights agora, tão perto da tragédia, é diferente do que teria sido vê-lo antes – mas permite contextualizar a inscrição das duas actrizes numa Hollywood que, para o bem ou para o mal, já deixou de existir. Debbie, texana revelada mundialmente aos 20 anos pela Serenata à Chuva, era uma das últimas sobreviventes de uma “velha” Hollywood onde “the show must go on”, erigida sobre os palcos do music-hall, o glamour, a fantasia, o entretenimento; uma "velha" Hollywood onde as vedetas eram pacientemente educadas pelos estúdios que as tinham sob contrato. Carrie, filha de L. A. transformada em ícone global pela Guerra das Estrelas, corporizou a “Nova Hollywood” dos anos 1970 com toda a sua liberdade e todos os seus excessos, desbaratando a carreira de actriz antes de dar a volta por cima ao álcool, às drogas e à doença bipolar com uma segunda vida como argumentista e humorista, expondo abertamente a vulnerabilidade de um modo que a geração da mãe nunca teria sequer contemplado.<_o3a_p>

O que Alexis Bloom e Fisher Stevens fazem é registar como, literalmente, Debbie e Carrie não conseguiam viver uma sem a outra – habitando em mansões separadas por um pequeno caminho de pedras numa mesma propriedade de Los Angeles (vá-se lá saber qual delas vivia nas traseiras da outra…), com a filha a tomar praticamente conta de uma mãe que, apesar da provecta idade, continuava a fazer o seu velho espectáculo de music-hall. No fundo, nada de muito diferente das visitas de Carrie às convenções da Guerra das Estrelas: a Hollywood da filha podia ser “nova” mas continuava a estar no negócio de vender sonhos, a princesa Leia era apenas a Irmã Sorriso alguns anos mais tarde. <_o3a_p>

Família disfuncional, sim, marcada pela ausência do pai, Eddie Fisher, que trocou Debbie pelos olhos violeta de Elizabeth Taylor quando Carrie e o seu irmão Todd (co-produtor do documentário e espécie de “fiel da balança”, ou de “âncora” entre as duas personalidades) eram ainda crianças. Mas essa disfuncionalidade, manifestada na vasta colecção de memorabilia dos anos de ouro de Hollywood em que Debbie enterrou o dinheiro, ou na fuga constante à sua herança que Carrie parecia buscar, acabou apenas por aproximá-las ainda mais. Há em Bright Lights qualquer coisa de requiem, e não apenas por o estarmos a ver “a quente” da morte de mãe e filha: é um requiem por uma Hollywood que não volta mais, que Debbie procurou manter viva através da memorabilia que acabou por ter de ser vendida, e a que Carrie nunca se conseguiu verdadeiramente esquivar (talvez nunca o tenha querido realmente).

Uma espécie de imenso adeus a uma era com tanto de deslumbrante como de inocente, com a qual as duas mulheres acabaram por fazer as pazes, a seu modo. Bright Lights é um filme de família, sim, mas de uma família feliz. Ou o mais feliz que conseguia ser.<_o3a_p>

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