Mário Soares, 92 anos em nove pequenas histórias

Episódios que não constroem a história de Soares, mas ajudam a conhecê-lo.

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AP/AMC ANTONIO CARRAPATO
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Aos 90, a festa foi memorável. O Espaço Tejo, na antiga FIL, encheu-se de amigos, fiéis e assim-assim – 275, mais precisamente. Portugueses e não só. Até os adversários de outros tempos marcaram presença. Passaram dois anos, e, durante esse período, Mário Soares perdeu a companheira de mais de seis décadas, Maria Barroso, que morreu na sequência de uma queda em casa, em Julho de 2015, aos 90 anos. Também foi deixando de aparecer em público, ausentando-se, por conselho médico, das reuniões do Conselho de Estado de que é membro permanente. No dia 7 de Dezembro fez 92 anos.

1. A mosca no café

Esta é uma história sobre um café com uma mosca dentro. Talvez Mário Soares nem tencionasse recordá-la, em entrevista a Anabela Mota Ribeiro, há 12 anos, mas a verdade é que a deixou escapar, depois de falar sobre a mãe e as ausências do pai. Contava Soares que o pai, republicano progressista, esteve muito tempo fora, exilado e preso e na clandestinidade. “Só começámos a conviver com os meus 13, 14 anos. Antes, o meu pai aparecia como uma figura mítica, nos sítios mais estranhos, para eu o poder ver e para ele me poder ver a mim.” Num desses encontros fugazes, Soares foi com a mãe e com o irmão a Peniche para ver o pai embarcar para os Açores. “Fomos de carro, chegámos lá e vi o barco. A minha mãe desesperada, o meu irmão e eu, tinha menos de dez anos, vimos o meu pai a ir para os Açores, não me posso esquecer. Depois meteram-me num café em Peniche e uma coisa que fixei: a minha mãe ia a beber o café e tinha uma mosca dentro!” Num momento de tristeza, Soares recorda o incómodo da mosca no café.

2. Debate à antiga

O cruzamento das vidas de Álvaro Cunhal e Mário Soares dava um romance. Dois homens da mesma época, de espectros políticos distintos mas próximos, ambos intelectuais e inteligentes, diferentes um do outro, capazes de elevar a discussão política e, ainda assim, ambos a concorrerem pelo seu lugar na História e na revolução. O lugar de cada um ficará para sempre marcado pelos inúmeros episódios, atitudes e discursos que produziram. Mas há um momento que, no pós-25 de Abril e depois de o país ter finalmente conhecido o sonho de liberdade que os dois andavam a vender sob o rótulo do socialismo e da social-democracia, ilustra a relação de admiração e respeito mútuo que alimentavam. É a célebre entrevista à RTP, emitida a 6 de Novembro de 1975. A do "olhe que não, olhe que não" dito por Cunhal, respondendo à acusação de Soares de que o PCP queria transformar Portugal numa ditadura. Durante 210 minutos – sim, foram três horas e meia – Joaquim Letria e José Megre moderaram o debate em que nenhum dos intervenientes se furtou aos temas densos. E até fumaram em estúdio, enquanto se discutia a diferença entre democracias ocidentais e democracias populares, enquanto se falava de socialismo e liberdades, de revolução e contra-revolução, de reformas sociais, de liberdade de imprensa, de ódio e intolerância. O frente-a-frente teve dois blocos com um intervalo a meio e não houve limite de tempo à partida.

3. Um homem do mundo

Ainda na década de 70, quando começou a falar-se em Comunidade Económica Europeia (CEE), em Portugal havia muitos eurocépticos. Não era o caso de Mário Soares, que se tornou um dos padrinhos da adesão de Portugal à CEE. Obrigado a viver no estrangeiro nos anos do exílio, o ex-Presidente da República era o mais cosmopolita dos políticos portugueses. A relação com a Europa não só era fácil para si, como era natural. Nos anos em que viveu em Paris, partilhou momentos com líderes históricos como Olof Palme, Pietro Nenni, Willy Brandt e até Salvador Allende. “Seguir a política francesa diariamente constituiu uma aprendizagem política de excepção”, disse o próprio. Uma expressão sua, proferida anos mais tarde, ficará para a história: “Mon ami, Mitterrand.” Soares referia-se ao ex-Presidente da República francesa com intimidade, porque era intimidade que havia entre os dois. “Quando fui visitar Paris, levei o Cesariny comigo, porque ele foi expulso de França, no tempo do De Gaulle, por causa da homossexualidade. Apresentei-o ao Mitterrand: ‘Olha, vocês expulsaram aqui este amigo que eu trago, que é um tipo de génio, mas homossexual, como muitos outros’”, recordou Soares a Anabela Mota Ribeiro.

4. Marinha Grande é do povo

Na altura em que Mário Soares se iniciou na política ainda não se usava o termo soundbyte, mas com ele era muito fácil ter frases que agarravam, que ficavam no ouvido – quem não se lembra da célebre “Soares é fixe”? Uma delas encerra toda uma história. “A Marinha Grande é do povo, não é de Moscovo.” Em plena campanha para as presidenciais de 26 de Janeiro de 1986, com a esquerda dividida em quatro candidatos, Soares foi alvo de insultos e de um projecto de bofetada que ficou para a história, quando se preparava para uma visita à Fábrica-Escola Irmãos Stephens. A Marinha Grande era então um bastião comunista que tinha, à entrada, uma placa a dizer: “Moscovo.” Na sequência da zaragata em que a comitiva se viu envolvida, o candidato lançou as palavras de ordem que marcaram a campanha: “A Marinha Grande é do povo, não é de Moscovo.” Nestas eleições não ganhou Freitas do Amaral, o candidato da direita unida que estava mais bem colocado. Venceu Soares, à segunda volta (a única que houve em Portugal até hoje) e com o apoio do PCP.

5. Desbloqueador de problemas

Ano de 1989. A Europa vive momentos históricos e Mário Soares assiste a uns quantos como espectador bem colocado. Em Praga, dá-se a Revolução de Veludo da qual Vaclav Havel acaba por sair Presidente, eleito a 29 de Dezembro. O intelectual está para tomar posse no último dia do ano como Presidente da República Checoslovaca (foi o último, antes da dissolução e cisão entre a República Checa e a Eslováquia), mas depara-se com um problema: o carro em que deve ir para a cerimónia é soviético. Vaclav Havel, o ícone da revolução, não aceita dar esse sinal ao povo. Apesar de a Checoslováquia não ser propriamente um país vizinho de Portugal, acabou por ser Mário Soares a resolver o problema. Ali presente por sugestão de Leonor Beleza, o então Presidente da República português envolveu-se no assunto, desbloqueou contactos e Vaclav Havel acabou a tomar posse num Renault 21 de matrícula portuguesa. Não é dos episódios mais importantes da vida de Soares, é certo, mas na ocasião serviu para demonstrar, com eficácia, a sua capacidade para resolver problemas.

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Mário Soares com Vaclav Havel Luís Vasconcelos/Arquivo

6. Forças de bloqueio

Os episódios do eixo Belém-São Bento – Soares na Presidência e Cavaco na chefia do Governo – são muitos e não há um mais memorável do que os outros. Mas o facto de o primeiro-ministro de então ter criado uma expressão para se referir esta relação tem a sua relevância. Cavaco chamou “forças de bloqueio” aos partidos da oposição que faziam valer, na Assembleia da República, a sua condição maioritária, atrasando discussões, chumbando propostas do Governo e actuando de forma a impedi-lo de levar a cabo a tarefa de governante. Mas a mais importante dessas forças era, sem dúvida, Mário Soares. Na segunda fase do mandato, já com Cavaco em situação de maioria absoluta, Soares vetou 30 diplomas (23 dos quais decretos-lei do Governo), lançou as Presidências Abertas (o pretexto ideal para levar, ao país real, a visão soarista da solução para o país) e ainda organizou o congresso Portugal Que Futuro?, no dia em que Cavaco estava no Pulo do Lobo. “Uma ingerência”, bradaram os cavaquistas. A parte boa é que Soares nunca criticava o Governo fora de Portugal. Isto dito por um antigo ministro dos Negócios Estrangeiros.

7. Aventuras exóticas

Hão-de ficar para a posteridade as fotografias de Mário Soares, enquanto Presidente da República, nas suas aventuras pelo mundo fora. Uma delas mostra o político de boné, camisola verde de marca e calções beges montado em cima da carapaça de uma tartaruga centenária, nas Seychelles. Outra mostra-o na Índia, a andar de elefante. Quem fez as contas garante que, só entre 1986 e 1996, Soares foi a 57 países, a muitos deles mais do que uma vez (por exemplo, a Espanha terá ido 24 vezes e a França 21). Ao todo, nesse tempo, percorreu 992.809 quilómetros. As viagens de Soares são, por isso, lendárias e deram até origem a uma anedota/adivinha que diz assim: "Qual é a diferença entre Deus e Mário Soares? Resposta: Deus está em toda a parte e Soares já lá esteve." Para um agnóstico, esta piada é uma espécie de medalha. E em matéria de medalhas e condecorações, Mário Soares também foi um Presidente que deixou marcas. Em dez anos, entregou mais do que qualquer outro: 2505 (0,68 por dia).

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Soares e a tartaruga - a famosa foto DR

8. 80 anos ao jantar

No dia 7 de Dezembro de 2004, no local onde viria, dez anos depois, a celebrar os 90 anos, Mário Soares fez o jantar do seu 80.º aniversário. Perante duas mil pessoas, anunciou o que muitos entenderam ser o ponto final na sua carreira política. Podia ter sido, mas não. Oito meses depois, no Hotel Altis, em Lisboa, estava a apresentar o manifesto eleitoral de uma nova candidatura a Belém, a terceira. O resto já se sabe. É a história de uma luta política, acima de tudo fratricida (o PS dividiu-se entre o apoio a Mário Soares e a Manuel Alegre), que culminou em derrota. Soares acreditava que Cavaco Silva seria um flop como Presidente da República e queria impedir que o país abraçasse de novo o cavaquismo. Mas, após dez anos fora da política e depois de uma primeira derrota contra Jorge Sampaio, Cavaco ganhou à primeira volta e Manuel Alegre ficou em segundo lugar. Soares teve menos de 15% dos votos, o pior resultado de sempre para um homem que foi duas vezes Presidente da República, três vezes primeiro-ministro, ministro, líder partidário, deputado, eurodeputado…

9. Duas zangas improváveis

Na sua longa vida, Mário Soares não fez só amigos. Coleccionou adversários políticos e riscou vários amigos da sua vida. Dois dos mais marcantes foram Salgado Zenha e Manuel Alegre. As zangas, separadas no tempo por 20 anos, estiveram ambas relacionadas com razões eleitorais – eleições presidenciais, mais concretamente. A primeira não foi inesperada. “O Zenha não me magoou muito porque não foi uma coisa que considerasse inesperada. Percebi que havia um distanciamento dele em relação a mim a partir dos últimos anos”, contou Soares em entrevista a Anabela Mora Ribeiro. “A cisão entre o Zenha e eu mesmo foi a propósito do Eanes, da 'crise do ex-secretariado', como se chamava. Fiz ali umas malfeitorias, ganhei o congresso e depois tive de varrê-los, tive de exercer o poder”, explicou. Os dois homens acabaram a disputar a cadeira de Belém, dividindo a esquerda. Ganhou Soares, ao contrário do que aconteceu em 2006, quando o facto de Manuel Alegre ter avançado como independente dividiu o PS de tal modo que a vitória coube a Cavaco Silva. Os dois fizeram as pazes em 2013, por telefone. Foi António José Seguro que trabalhou para a aproximação.

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Mário Soares e Manuel Alegre num debate antes das eleições presidenciais em 2005 Luís Ramos
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