Vale tudo, inclusive “tirar olhos”!

A organização pretende que seja uma réplica real dos livros e do filme da saga “Os Jogos da Fome”.

Foi notícia fugaz em meados de Dezembro. No meio da enxurrada comunicacional, soube-se que, na distante Sibéria, vai haver um “reality show” onde tudo (não) vale. Um “big brother” no grau mais superlativo da indignidade. “Um jogo para testar a capacidade de sobrevivência”, anunciou o empresário russo da iniciativa. Trinta concorrentes viverão na estepe siberiana, durante nove meses em condições extremas de penúria e frio, enfrentando muitas adversidades, desde animais e flora selvagens (ursos, cobras, cogumelos venenosos…) até às indomáveis intempéries climáticas.

Vai valer tudo, disse o russo. Desde “coisas irrelevantes” como lutar e embriagar-se, até “coisas menos banais” como violar e matar! Na apresentação pública foi dito que está previsto que “cada concorrente consinta que pode ficar mutilado ou até ser morto “. Para se municiarem para a luta pela sobrevivência, os concorrentes (já há uma fila de candidatos!) podem levar até 100 quilos de equipamento, incluindo armas brancas.  Haverá 2.000 câmaras nas árvores espalhadas por 900 hectares e câmaras que cada concorrente terá consigo. Perante a hipótese de tudo poder acontecer, os concorrentes têm de assinar um termo de responsabilidade em que reconhecem o perigo de vida que correm ao participar no ignominioso divertimento.

Vão poder candidatar-se quaisquer pessoas adultas e – repare-se neste pormenor sádico – “mentalmente sãs”! De acordo com o noticiado, serão preparadas por ex-militares da tropa de elite russa, e o vencedor receberá um prémio de 1,6 milhões de euros.

A organização pretende que seja uma réplica real dos livros e do filme da saga “Os Jogos da Fome”, ao mesmo tempo que sublinha que o programa será monitorizado pela polícia, de modo a assegurar o cumprimento da lei.

Ou seja, tudo é permitido, excepto o que não sendo proibido lá dentro é proibido cá fora. Um golpe de marketing ou um incitamento insidioso para ultrapassar a mais vermelha das linhas da vida? A distância entre crime e vitória (ou castigo?) é, aqui, perturbadoramente próxima.

Não deixa de ser curiosa a comparação entre a “regra maioritária” na ex-URSS (tudo era proibido, mesmo o que fosse tido como permitido) e a lógica deste abjecto jogo de vidas (tudo é permitido, mesmo o que possa ser considerado proibido).

Neste jogo, o coração da dignidade da pessoa é esventrado de uma maneira inimaginavelmente sórdida. Os concorrentes serão incitados a se transformarem em infra animais. Sim, porque os animais têm códigos de conduta que sempre respeitam.

É nisto que desemboca a ideia da pessoa como objecto, do mal como instrumento para combater o niilismo e a ausência de sentido de muitas vidas, da banalização levada aos mais insuportáveis limites de violência gratuita e de morte, da falsa e efémera vitória da fama nem que seja pelos piores motivos, da expressão selvagem do egoísmo e da consequente negação do Homem como ser eminentemente social e relacional, da ditadura das audiências num brutal curto-circuito entre o dinheiro e o mercado da lama humana.

São estas permutas relativistas que põe pessoas a caminhar sobre algodão movediço, que anestesiam comportamentos letais e que igualizam, moralmente, fins e meios.

Sempre se poderá contrapor que esta “estória” é lá nos confins do Mundo e é uma insignificante ilhota de degradação da ecologia humana. Bom seria que assim fosse. Não me admira, porém, que face ao “sucesso” desta siberiana ideia, no futuro, com mais ou menos amaciamento, tenhamos concursos semelhantes no mundo ocidental.

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