As vendas de Mein Kampf dispararam na Alemanha – mas não é aquilo que parece

São os consumidores tradicionais dos livros de política e de História, não os neo-nazis, que estão a esgotar a nova edição crítica do livro. Vendidos já 85 mil exemplares, o manifesto está a caminho da sexta reedição.

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A reedição de Mein Kampf chegou às livrarias a 8 de Janeiro do ano passado Michael Dalder/Reuters

A procura do errático manifesto anti-semita que Hitler publicou em 1925, e que até muito recentemente era literatura proibida na Alemanha, disparou no ano passado. Caducados, em Janeiro de 2016, os direitos de autor que vigoravam sobre Mein Kampf, uma nova edição do livro chegou aos escaparates alemães pela primeira vez desde o final da Segunda Guerra Mundial. Desde então, venderam-se cerca de 85 mil exemplares. O editor, o Instituto de História Contemporânea de Munique, anunciou já que, para acompanhar a crescente procura, há uma sexta edição a caminho das livrarias, onde deverá estar disponível até ao final deste mês.

A popularidade da nova edição surpreendeu o Instituto de História Contemporânea de Munique. Os números de vendas “esmagaram-nos”, diz o director da instituição, Andreas Wirsching. Mas, acrescenta, são os leitores tradicionais dos livros de História, e não os neo-nazis, que estão a alimentar este sucesso.

“Em geral, [os compradores de Mein Kampf] parecem ser leitores genericamente interessados em temas de política e de História, assim como pessoas que desenvolvem actividades de educação política, como professores”, explica o instituto numa nota. “O medo de que esta reedição acabasse por promover a ideologia de Hitler, ou até torná-la socialmente aceitável, dando aos neo-nazis uma nova plataforma de propaganda, revelou-se totalmente infundado”, disse ainda Wirsching, citado pela Agência France-Presse.

A nova edição crítica, de duas mil páginas, é profusamente anotada e comentada por historiadores. Anteriores versões de Mein Kampf publicadas durante o período nazi estavam repletas de imagens de Hitler e de símbolos nazis como a suástica, mas o novo volume tem uma simples capa branca – a iconografia nazi continua banida na Alemanha, decorridos 72 anos desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Perto de 12 milhões de cópias do livro foram vendidas durante a ascensão e a queda do Terceiro Reich entre 1933 e 1945.

Após a guerra, o estado da Baviera assegurou os direitos sobre a obra e impediu com mão-de-ferro a sua reimpressão e distribuição. Mas quando há um ano a obra entrou no domínio público, o Instituto de História Contemporânea de Munique decidiu avançar para a publicação de uma nova edição.

A intenção começou por gerar controvérsia na Alemanha, um país que continua em luta com o seu doloroso passado. Alguns temeram que a distribuição do livro pudesse revigorar pequenos movimentos neo-nazis. Outros viram potencial didáctico numa reavaliação do livro feita sob orientação rigorosa.

“Não nos opomos a que uma edição crítica que contraponha dados científicos às teorias raciais de Hitler esteja à disposição da investigação e do ensino”, disse um líder da comunidade judaica alemã, Josef Schuster, ainda em 2015, pouco antes de expirarem os direitos de autor sobre a obra. Também a ministra da Educação, Johanna Wanka, defendeu a decisão de reimprimir o livro, vendo numa nova edição anotada a garantia de que “os comentários de Hitler não permanecerão por refutar”. “Os simpatizantes de Hitler que possam estar interessados no livro terão de procurar noutro lado aquilo que querem encontrar”, acrescentou Wirsching na altura.

No ano que entretanto decorreu desde a reedição da obra, a Europa assistiu à ascensão de partidos de extrema-direita e anti-imigração, incluindo o alemão Alternativa para a Alemanha (AfD) e o austríaco Partido da Liberdade (FPÖ) – que perdeu por pouco as presidenciais de Dezembro, eleições que quase deram à Europa o seu primeiro presidente de extrema-direita desde o final da Segunda Guerra Mundial. Até agora, tais partidos têm-se abstido de citar o Mein Kampf ou de invocar directamente o ideário nazi.

Indo mais longe, Wirsching acredita que a nova edição e a sua surpreendente popularidade pode constituir uma valiosa barreira contra o novo sentimento de extrema-direita na Europa. “O debate acerca da visão do mundo de Hitler e da sua abordagem à propaganda permitiu olhar para as causas e para as consequências das ideologias totalitárias, numa altura em que as visões autoritárias e os slogans de direita estão a ganhar terreno”, argumenta.

Exclusivo PÚBLICO/Washington Post

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