Aqui não há nenhum ângulo para tornar a vida atraente

Há poucos caminhos rectilíneos na fotografia de André Príncipe. Os três volumes de You’re Living for Nothing Now mostram cinco anos na vida de alguém que tenta cativar-nos para o pulsar da vida, em vez de nos levar pela mão. Um livro que funciona como desfoque da realidade.

Fotogaleria
Fotogaleria
Fotogaleria
Fotogaleria
Fotogaleria

Uma destas noites sonhei que André Príncipe tinha morrido. E que a conversa que tínhamos marcado por telefone dias antes sobre o seu novo livro jamais poderia acontecer, que ficaria tudo por explicar, que agora nada poderia ser revelado sobre o que o levou até You’re Living for Nothing Now. A conversa com o fotógrafo, antes do Natal, começou com a confissão deste sonho e, por momentos, as perguntas do entrevistado sobrepuseram-se às do entrevistador.  

A imagem da nossa morte na cabeça dos outros suscita curiosidade. André quis saber mais sobre os pensamentos desordenados do jornalista sobre a sua morte, riu-se deles, até que começou a relacioná-los com aquilo que fez no seu mais recente fotolivro, lançado em Novembro na Offprint, a feira que, todos os anos, decorre em paralelo com o maior encontro de fotografia do mundo, a Paris Photo. Começou com o grafismo do subtítulo (I Hope’re Keeping Some Kind of Record 2009-2013, no interior do livros). Mais exactamente com a localização da data 2009-2013, que na maqueta da obra aparecia imediatamente abaixo do seu nome, como numa inscrição sepulcral, dando a entender que tinha vivido apenas cinco anos. Assim que notou esta conotação gráfica funerária pediu à designer para mudar a localização. A rir, outra vez: “Este período, estes cinco anos estão realmente mortos, mas a data não podia vir por baixo do meu nome!” E continuou, avançando mais para o interior destes três volumes de aparência austera que mantêm a linha gráfica das antigas pautas de música, habitual no seu trabalho de edição fotográfica: “Toda a fotografia tem que ver com morte. É da sua natureza. Estes livros abordam vários temas, um deles é o elogio do efémero, a sua beleza, seja uma onda que bate e desaparece, seja um pássaro que voa. Há um desejo de fazer esse elogio.”

Foto

O sonho e a morte cruzaram-se ainda quando se tratou de recordar o primeiro ensaio do que viria a ser este livro, materializado na exposição Antena 2 (Galeria Pedro Alfacinha, Lisboa, Novembro de 2014), onde André Príncipe (Porto, 1976) apresentou um conjunto de imagens num formato inspirado nas sensações e nas visões aleatórias recebidas nas chamadas “experiências de quase-morte” (a ciência chama-lhe alucinações). “O teu sonho entra aqui de uma forma notável, porque a ideia dramatúrgica passava exactamente pela minha morte. Na exposição queria explorar a quantidade e a diversidade de imagens que vemos nas experiências de quase-morte. As imagens que vêm à tona nesses momentos não são as mais importantes, está tudo misturado. Há uma grande aleatoriedade.”

Foto

Aleatoriedade é talvez a palavra que mais nos assoma à medida que se folheiam as 240 páginas de You’re Living for..., tal é o salpico de imagens de diferentes escalas, formatos, tons e origens (técnicas, temáticas...). Este efeito de caos André Príncipe previu-o e tentou domesticá-lo logo à nascença, dividindo em três aquilo que começou por ser um livro, materialmente mais difícil de manobrar em termos narrativos. Com três tomos foi possível reduzir a noção de incerteza e de acaso (através da repetição de soluções gráficas e de protagonistas de livro para livro), garantir mais estímulo com diferentes ritmos (o primeiro acelerado, o segundo mais acelerado ainda, o último mais pausado) e vários começos e fins, estratégia que tenta não esmorecer a vontade de se chegar às últimas páginas, onde a longa sequência com um dervixe nos enreda com uma dança encantatória e nos lança para fora desta passagem por cinco anos da vida de um fotógrafo que gosta de pôr “tudo lado a lado” (o que não quer dizer que tenha tudo a mesma importância).

“Quero usar tudo”

Perante uma mescla aparentemente indistinta de fotografias, Príncipe tentou estabelecer ligações, relações e harmonias que, no pior dos casos, podem ser perceptíveis apenas por si. “Nos livros há uma busca enorme pelo sentido, que se vai resolvendo página a página. Há um exercício quase obsessivo para tentar fazer sentido entre todas as coisas.” Mas é o próprio a admitir que “às vezes não há sentido algum”, quase nada, à excepção de elementos muito simples, como a relação entre cores ou jogos de olhares.

Não satisfeito com o que já era difícil, também não facilitou a tarefa da sua dupla condição (“esquizofrénica”) de autor e editor em simultâneo. Enquanto autor, decidiu incluir todo o tipo de imagens sem grandes preocupações temáticas ou estéticas, apenas com uma baliza temporal (2009-2013), ou seja, todo um mar de escolhas com uma navegação tormentosa. Príncipe sente-se capaz de fotografar tudo, de todas as maneiras e com todo o tipo de câmaras: “Quero usar a linguagem da fotografia. Quero usar tudo. E não me defendo desse impulso. Interessa-me mover-me desta maneira sem fazer grande pensamento sobre isso.” Enquanto editor, criou um fotolivro do género “eu no mundo”, de certo modo inovador e seguramente arriscado na forma, no conteúdo e nas vendas. “As imagens deste livro têm uma décalage de tempo muito estranha. Comercialmente é absurda. Fazer um livro em 2016 sobre este ‘excelente’ tema que é 2009-2013! Não é exótico pelo passado, nem é sobre a actualidade. Não tem ângulo nenhum. Em termos comerciais, é a ideia mais imbecil do mundo. Se fosse sobre Donald Trump e se o publicasse daqui a um mês, vendia. Se fosse sobre 1997, as roupas já eram diferentes, perceberíamos que era um passado distante. Assim é mais estranho, ainda não se consegue perceber bem o que mudou. É um livro que funciona como uma espécie de desfoque da realidade.”

Mas como é, afinal, conceber um livro enquanto autor e editor? “Uma grande merda.” Porque “é preciso pensar em trabalhos que possam ser rentabilizados” para tentar “não lixar a editora”, a Pierre von Kleist (em sociedade com José Pedro Cortes), ao mesmo tempo que se cria artisticamente “tentando afastar o pensamento sobre se o livro vai vender ou não”. “Não sei se as pessoas se vão interessar por este livro. O que sei é que não o fiz à defesa, quis expressar uma coisa da melhor maneira que sei, nova. Acho que corri riscos, muitos riscos. É esse o trabalho de um artista. Não me arrependendo. Pelo menos tentei. Se me espalhei...”

Foto

O cineasta, fotógrafo e editor assume o elevado grau de risco ao erguer uma obra que pode passar como livro autobiográfico (tem muitas imagens de si e dos que, imaginamos, lhe são próximos), como livro de viagens (há permanentemente a noção de deslocação e geografias muito diferentes) ou como forma de arrumar uma “porção de tempo” da vida de alguém (a dele próprio entre 2009 e 2013). Mas da mesma maneira que resiste quando se tende a classificar You’re Living for... como girando “apenas” à volta de si, como sendo um exercício auto-centrado, não renega esse lado de reflexão pessoal, desde que através dela se vislumbre alguma coisa do seu mundo e, por arrasto, também uma parte (ínfima, é certo) do mundo em que vivemos. “Há um certo tipo de fotógrafo que sou que vem da tradição do i novel [género literário de tradição janonesa que assenta na narração auto-reveladora, geralmente com o autor como a personagem central] que não quis esconder. Todos os fotógrafos que não trabalham com ‘projectos’ mas que trabalham com ‘fotografia’ estão de alguma maneira a fazer sempre um ‘eu no mundo’. Essa discussão sobre se é autobiográfico ou não interessa-me pouco.”

Pulsar da vida

Quem quer que seja o centro, exista ele ou não, há poucos espécimes como este no campo da edição fotográfica (mundo incluído). Antes de começar o trabalho de escolha e sequenciação das imagens (que também tem mão de Cortes), Príncipe foi à procura de autores que pudessem ser referenciais. Não encontrou nada igual ao que queria fazer, apenas o holandês Ed van der Elsken (1925-1990) se aproximava pela “energia”, “contaminação de imagens”, “desejo de fluxo”, “mistura de tudo, “pulsar da vida”. “Depois de se verem os livros de Van der Elsken, não se aprende nada, mas sente-se a energia. Tem o pulsar da vida dele. Queria que este livro tivesse o pulsar da minha vida entre 2009 e 2013.”

Aquele que é o mais ambicioso fotolivro de Príncipe até agora é também aquele que hoje lhe causa mais angústias. Quando recebeu o livro em Paris, no primeiro dia da Offprint, ainda quente da gráfica, mal teve tempo para o desfrutar e para o ver com atenção. Só depois do frenesi da feira, já em Lisboa, se deteve nele. E a primeira sensação foi de pânico. Pensou: “Foda-se, o que fui fazer! O que é isto? Não sinto nada. Acho que falhei.” Nessa altura ficou com a sensação de que era um livro “muito difícil” de compreender, cheio de subtilezas, provavelmente só notadas por poucos. Agora, ainda sem muitas certezas, está mais confortável: “Estive a ver os três livros outra vez. Já não me pareceram tão mal, mas também não me pareceram muito bem. É muito possível que venham a ser um fracasso. De qualquer maneira, esse julgamento agora está do lado das pessoas. (...) A minha esperança é que daqui a cinco, dez anos eles sejam lidos claramente como livros sobre o mundo e não sobre a minha vida privada.”

Assumindo que a tentativa de controlar tudo nesta massa enorme de imagens produzidas durante cinco anos possa ter dado maus resultados, Príncipe afirma que a grande dificuldade passou por “ser objectivo e subjectivo ao mesmo tempo”. “É a única coisa que interessa mesmo. Os livros bons são os que conseguem estas duas dimensões, caso contrário é fácil demais. Tornam-se uma fórmula. Quando não se tem fórmulas, é mais difícil e há muito mais espaço para o erro.”

Foto

Neste livro “relacional”, como o classificou durante uma conversa entrecortada pelo gongo do início de sessão e pelo tilintar violento dos talheres do café, o fotógrafo preferiu o risco e o paradoxo do “caos controlado” a tudo o que lhe podia valer como rede, fosse um sítio preciso (Portugal em crise, por exemplo) ou um grande acontecimento (a chegada da troika, em 2011). “Ou seja, decidi não me agarrar a nada, o que me expõe muito mais. Mas não foi com uma intenção provocatória. Simplesmente preferi retirar as redes quase todas. E não tenho nenhum ângulo para fazer isto atraente.”

Depois de se folhear You’re Living for..., percebe-se que André Príncipe gosta da imperfeição, da materialidade das imagens, das imagens enquanto imagens, e da maneira como podem ser apreendidas apenas como superfície e não pelo “tema”, pelo “género”, forma, formato ou pelo passado que representam. Os rastos (os defeitos e as assimetrias) que ficaram da digitalização dos negativos registados em película (um “acto de resistência”) foram acrescentados a toda a mancha gráfica, de maneira a distanciá-la da tentação “da grelha milimétrica” e com o intuito de dar tactilidade às imagens. Apesar de muito presente, esse mundo analógico nunca é protagonista. “Conheço muitos fotógrafos que puseram a película no centro do trabalho. Não quero fazer isso. Porque para mim o mais importante continua a ser o mundo, as pessoas, sou mais da vida do que da fotografia. Mas também não quero apagar completamente esse lado do suporte analógico. Interessa-me mostrar um bocadinho da película.”

Aparentemente de uma forma desinteressada (e ainda sem a compulsão permitida pelas câmaras dos telemóveis), Príncipe parece estar sempre a fazer algum tipo de registo (como na canção de Leonard Cohen), com a esperança de nos tocar com o seu mundo. “Estou a tentar expressar uma coisa que é viver, e viver é assim.” E dizê-lo, como o diz, até parece simples.

Sugerir correcção
Comentar