A infelicidade do sujeito que escreve

W.G. Sebald disseca o perfil psicológico de autores maiores da nossa contemporaneidade. Uma literatura que se nutre da melancolia e da incompletude pessoal e histórica.

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Sebald abandonou a Alemanha, mas não a língua materna em que escreve Getty Images

A Descrição da Infelicidade não é um livro como outros já editados entre nós de W.G. Sebald e que o deram a conhecer: Austerlitz, Os Anéis de Saturno ou Os Emigrantes. Paralelo talvez apenas com Pátria Apátrida. Os outros são peregrinações fantasmáticas, estéticas e éticas a partir de um ponto qualquer preciso de onde se derrama uma história, mnemonicamente, sempre sob uma espécie onda encantatória de rememorações alegóricas. À maneira do flaneur benjaminiano. Walter Benjamin, aliás omnipresente. E é neles que se pensa quando se pensa em Sebald.

Livros pontuados por imagens de arquivo, aquelas que não ilustram nada mas acicatam um resto que resiste. Imagens-borboleta (images-papillon) presas no texto à maneira de um lepidopterologista (Muriel Pic, W.G.Sebald, L’anatomiste de la Mémoire, Puf, 2016). Na torrente de associações, elas suspendem num instante a respiração. É o seu traço mais reconhecido. Um narrador assombrado por vestígios que emanam do mundo rasurado, totalmente destruído na Segunda Guerra. Especialmente na Alemanha, que silencia, em que a memória colectiva é subliminarmente povoada por recalcamentos. Este é o seu universo sensível também em vários outros textos, entre a pura ficção e o documental (Vertigens. Impressões, Campo Santo).  Uma falta e uma  intransponível incompletude parecem ser a pedra de toque do escritor para toda a escrita. 

Além de romancista, Sebald, que abandonou a Alemanha (mas não a língua materna em que escreve), ensinou e viveu em Norwich (Reino Unido), foi professor de Literatura Contemporânea e Literatura Alemã. Reuniu textos, escreveu ensaios. A Descrição da Infelicidade é um deles, visando a prova de agregação na universidade. Não possui a sintaxe peculiar que o distingue, a toada do anjo que revisita a seguir, depois da calamidade. Antes de mais, em comum ou como ponto de partida, existe a falta. A derrocada do Império Austro-Húngaro lateja ainda aqui, numa Áustria atravessada por tudo e todos, diminuída, menor do que Portugal.

O hiato que psicológica e psicanaliticamente (inter)fere cada um dos autores é o de onde são obrigados a escrever, como recurso de sobrevivência, A exibição da infelicidade é um modo de a superar; daí que a melancolia que norteia o exílio e a errância se transforme numa forma de resistência, assim como o negativismo (civilizacional, político). Esta obra trabalha a literatura austríaca: Stifter, Schnitzler, Hofmannsthal, Kafka, Canetti, Thomas Bernhard, Peter Handke e outros. Autores cuja actividade se desenrola no crepúsculo do Império Austro-Húngaro, na degenerescência dos Habsburgos e no advento da psicanálise, quando não a antecipa, assim como no aflorar do nazismo. Os criadores magistrais que a literatura austríaca alberga, ao contrário da Alemanha do Reich, são capazes de - ou coagidos a - transgredir todos os limites, mesmo cotejando a sociedade burguesa.

Alguns casos ao acaso, como modelo do modus operandi: Adalbert Stifter (1805-1868). Suicidou-se aos 63 anos: vida miserável, baça. Apaixona-se pela filha de um comerciante rico de Viena, que, considerando-o um homem sem ambições, lhe recusa a mão da filha. Casa com uma ex-prostituta. Acusado de reaccionarismo e negativismo no que escreve: a paisagem tal e qual ela é, sem ambições também, acusado ainda de dissolução de qualquer ordem metafísica. No retrato de uma mulher, sublinha a ponta de um sapato, a parte, o fetiche, perversamente uma ninfeta, nunca o corpo inteiro, a consumação de um casamento. O fetichismo subjacente ao sex-appeal do inorgânico é o seu nervo vital. Ao descrever a roupagem ou a Natureza, anterior à civilização, coloca a materialidade do que escreve num patamar de eternidade, fora da História.

Outro caso: Andreas de Hofmannsthal. Escrito já o autor rondava os 40, inacabado como não podia deixar de ser. Fragmentos. Numa cultura burguesa, o casamento monogâmico era normativo, assim como comum a sua transgressão numa Viena já no fim, em fervilhante declínio. Fez parte dessa geração brilhante dos Modernistas de Viena. Mas escusou-se sempre aos seus enredos pessoais que uniam o mundo masculino, campo “criador da cultura de Kraus, Schnitzler (...), Mahler,  Rilke (...), em permutas diversas com as musas paneróticas Alma Mahler-Werfel, Lou Andreas-Salomé, Gina Kraus (...)”. Escusou-se por monogamia estrita? Ou incerteza, fantasmagoria da impotência? A questão do medo das mulheres estava em voga, a insaciabilidade, a histeria eram mote. “Andreas, texto a que nunca conseguiu dar unidade, é uma viagem a Veneza, escrita numa idade em que o escritor já não tinha nada a ganhar e tudo a perder. Um romance de aprendizagem, de formação? Mas o que nele deflagra é a indecisão sexual, é a dissolução da identidade da personagem narrador, não a sua formação. É daí que nasce Andreas, dessa ferida narcísica ou fissura na identidade a partir da qual Hofmannsthal escreve. Para (não) colmatar a infelicidade. Lá encontra “uma sociedade de actores, com um meio em que as identidades, até de género, se alteram conforme as cena”, os indícios de homossexualidade deflagram.

O terceiro caso: Thomas Bernhard. Nele a estratégia da criação acresce do riso que por seu turno advém da maneira feroz como zomba do mundo e de si próprio; o que lhe burila a culpa e a megalomania de que é insistentemente acusado. É pelo riso que nele se germina um espaço livre. A Natureza (anterior ou exterior à civilização) não tocada, como o cadáver ou a menina virgem de Stifter, não salva. É uma ficção romântica. Não existe. A calamidade não deixou brechas, o Império soçobrou, uma visão pessimista cobre o espaço. Só o riso faz deflagrar o gelo.

Este livro tem uma tese, uma ideia forte a demonstrar.

Se cada um dos escritores escolhidos tem a sua estratégia própria, há uma melancolia que consome a literatura austríaca de finais do século XIX e da primeira metade do século XX; literatura que se nutre da melancolia e da incompletude pessoal e histórica, é que ela engendra a infelicidade que só a escrita consegue superar absorvendo. Abordagem fascinante de autores maiores da nossa contemporaneidade em que se disseca o perfil psicológico e daí se traça uma linha que os envolve a todos. Uma luz negra que, de certo modo, os revela mais. Livro fascinante, aproximação de obras e autores cuja descoberta ou redescoberta nos apela.

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