Os nossos falhanços

O tráfico humano é um negócio sujo, dos mais sujos que há memória. Mas do ponto de vista de quem o usa é o último recurso, um acto de desespero em busca da sobrevivência — que, ironicamente, tem levado muitos milhares à morte. A reportagem que hoje publicamos, que é fruto da investigação do consórcio Investigate Europe, tem o mérito de expor a forma remendada como hoje se lida com o problema dos imigrantes no Mediterrâneo. E mais grave é quando se olha para o historial de inacção da UE em todo este processo.

Obviamente que a União Europeia não é responsável pelo tráfico, mas tem culpas no cartório em relação às condições que permitem o tráfico. Tem há anos uma política de vizinhança que pouco rendeu e por isso vê a Líbia e a Síria a implodirem e a Tunísia a assumir--se como viveiro de terroristas. Deixou na mão dos Estados a definição de políticas de integração e revelou-se incapaz de assegurar que a cidadania europeia chegasse a quem está dentro das fronteiras da União, mas fora do sistema. Tolerou os comportamentos abjectos de Órban na Hungria praticamente sem críticas. E tratou como resíduos tóxicos os imigrantes, comprando aterros de seres humanos à Turquia — que vai reduzindo o fluxo a troco de muitos euros.

Falhou quase tudo na União Europeia. Mas a culpa não é “de Bruxelas”. A culpa é dos líderes dos Estados-membros e dos políticos europeus, porque são esses que fazem a União — somos todos nós, os cidadãos deste continente, que fazemos a UE quando votamos nos nossos políticos e quando caucionamos as suas opções. Para dar apenas um exemplo: Durão Barroso não chegou à presidência da UE sem antes liderar a diplomacia portuguesa e o governo nacional. Todos os políticos a quem apontamos o dedo quando falamos “de Bruxelas” são o nosso reflexo.

Por isso, de nada adianta olhar para o lado e responsabilizar o vizinho ou os extremistas ou os traficantes. Fomos nós, colectivamente, que falhámos enquanto projecto que poderia e deveria ter dado outras condições aos refugiados e aos imigrantes. Fomos nós que vimos o pequeno Alan Kurdi morto na praia e, no instante a seguir a deixar o like no Facebook, olhamos para o lado e seguimos com a vida de todos os dias. Não vale a pena ser moralista, vale a pena aprender para o futuro — porque a fortaleza Europa está mesmo a pôr-se a jeito para ser derrubada por dentro.

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