Japão: em Yasukuni, a II Guerra Mundial ainda está por terminar

Um dia depois de Shinzo Abe ter feito uma visita histórica a Pearl Harbor, a ministra da Defesa japonesa visitou o controverso santuário Yasukuni, onde é feito o culto a criminosos de guerra.

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Uma sacerdotisa xintoísta presta homenagem no santuário de Yasukuni Reuters/TORU HANAI

A visita do primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, a Pearl Harbor na semana passada, onde ao lado do Presidente norte-americano, Barack Obama, prestou homenagem aos milhares de soldados mortos, pretendia fechar um ano de reaproximação entre os dois aliados para quem os traumas da História continuam a ter impacto. Bastou um dia, porém, para que os fantasmas de guerras passadas voltassem para assombrar o presente.

Pela primeira vez, um líder japonês visitou o memorial do USS Arizona ao lado de um Presidente norte-americano. Abe prestou a suas “sinceras e eternas condolências” pelo ataque de surpresa da Força Aérea japonesa, que na manhã de 7 de Dezembro de 1941 matou 2400 militares estacionados na base de Pearl Harbor, no Havai. Na sua comitiva estava a ministra da Defesa, Tomomi Inada, que, horas depois, prestava homenagem no controverso santuário de Yasukuni, em Tóquio, aos militares japoneses mortos nas guerras do último século, incluindo alguns dos que planearam o ataque a Pearl Harbor.

O Governo sul-coreano lamentou a decisão da ministra em visitar um local “que glorifica uma colonização ilegal, uma guerra de agressão e santifica criminosos de guerra”. Inada, por sua vez, disse esperar que “qualquer pessoa, independentemente da sua nacionalidade, possa entender os actos de expressar gratidão, respeito e homenagem junto daqueles que sacrificaram as suas vidas pelo seu país”. É esta diferença quanto aos significados atribuídos ao santuário que está subjacente à sua controvérsia.

Não haverá hoje símbolo maior do passado sangrento do Japão Imperial do que Yasukuni. É lá que é prestado o culto, segundo o ritual xintoísta, a todos aqueles que morreram enquanto protegiam o imperador, cujo sacrifício os santificou, tornando-os kami. Foi construído em 1869, após o período da Restauração Meiji, durante o qual foi forjado o Império, e desde então recebeu kami de todas as guerras combatidas em nome do imperador, quase sempre terminando em ocupação – Taiwan em 1895, Coreia em 1910, Manchúria em 1931, China em 1937 e o sudeste asiático em 1941.

Yasukuni é hoje lugar de homenagem a quase 2,5 milhões de soldados mortos em nome do Japão. Mas são cerca de mil aqueles no centro da discórdia que, 75 anos depois do final da II Guerra Mundial, continua a dificultar a relação do Japão com a China, a Coreia do Sul e os EUA. Entre os kami eternizados em Yasukuni estão mil criminosos de guerra, julgados e condenados, alguns à morte, pelos tribunais especiais liderados pelos Aliados após 1945. Alguns militares estiveram, por exemplo, envolvidos no massacre de Nanjing, em 1937, quando as tropas japonesas mataram centenas de milhares de civis já depois de terem tomado a cidade. Outra das figuras homenageadas em Yasukuni é o almirante Isoroku Yamamoto, um dos principais responsáveis pelo planeamento do ataque aéreo a Pearl Harbor. Foi só em 1978 que os sacerdotes do templo incluíram nos mortos homenageados 14 antigos líderes políticos e militares que foram condenados à morte pelo tribunal de guerra, incluindo o primeiro-ministro durante a II Guerra, Hideki Tojo.

Para além do santuário, há ainda um museu de História, onde é apresentada uma versão consideravelmente diferente sobre o papel do Japão durante a II Guerra Mundial daquela que é usada nos países que sofreram a ocupação. Os abusos cometidos pelas tropas japonesas são desvalorizados e é ocultado o facto de que as guerras travadas pelo Japão desde o final do século XIX terem objectivos expansionistas.

A “alma negra”

As visitas de líderes políticos a Yasukuni são encaradas como provocações pelos vizinhos do Japão. A visita de Abe ao santuário em 2013 foi recebida com cólera em Pequim e Seul. Num artigo no Daily Telegraph, o embaixador chinês no Reino Unido, Liu Xiaoming, tentou sensibilizar os britânicos para o significado do acontecimento para os países que foram ocupados, comparando o santuário a “uma espécie de horcrux” – um conceito usado pela escritora J. K. Rowling na saga Harry Potter para se referir aos objectos usados pelo feiticeiro negro Lord Voldemort para guardar pedaços da sua alma. Yasukuni, escreveu Liu, “representa as partes mais negras da alma” do Japão.

Abe não regressou a Yasukuni, mas continuou a oferecer tamagushiryo (donativos em dinheiro) para a manutenção do santuário. Para o primeiro-ministro, a difícil História do seu país assume também uma carga pessoal. Abe é neto de Nobusuke Kishi, que foi primeiro-ministro entre 1957 e 1960 mas antes disso exerceu um papel importante na administração colonial japonesa na Manchúria durante os anos 1930 e no pós-guerra chegou a ser preso por suspeita de crimes de guerra – nada acabou por se provar. Um dos primeiros locais onde Abe se deslocou após vencer as eleições de 2012 foi o túmulo do avô, onde prometeu “recuperar a verdadeira independência” do Japão, segundo a Economist.

A promessa de Abe representa um dilema que os políticos japoneses enfrentam. Boas relações com países como a Coreia do Sul, a China ou os EUA são vistas como indispensáveis para que o país alcançasse o estatuto de uma das maiores economias do mundo. É nessa lógica que se inserem iniciativas como a visita a Pearl Harbor ou o acordo alcançado há um ano com a Coreia do Sul para indemnizar as “mulheres de conforto” – denominação dada às coreanas forçadas a satisfazer sexualmente os soldados japoneses durante a II Guerra Mundial. Em Maio, Obama tornou-se no primeiro Presidente norte-americano em exercício a visitar Hiroxima, cidade arrasada por uma das bombas atómicas lançadas pelos EUA em 1945.

No seguimento da visita de Abe a Pearl Harbor, um colunista do Asahi Shimbun escrevia que o primeiro-ministro é “um político pragmático, estratégico e racional, ao perceber que as suas inclinações pessoais são subordinadas pelos imperativos nacionais do Japão, que incluem o fortalecimento de relações com capacidade multidimensional com os EUA através de actos reconciliatórios”.

Mas as visitas de políticos japoneses a Yasukuni também servem para assegurar apoio de parte da população para quem o passado do Japão está longe de estar pacificado. O pós-guerra é ainda hoje recordado como um dos períodos mais humilhantes na História do Japão. Depois da rendição, o país foi ocupado pelos EUA até 1952 e a sua Constituição, imposta pelas potências vencedoras, mantém o Japão privado de Forças Armadas regulares.

A punição sentida pela sociedade é vista por certos sectores da sociedade como injusta. O revisionismo histórico – cujas teses, em parte, são apoiadas por Abe – encara o expansionismo japonês da primeira metade do século XX como semelhante ao que foi levado a cabo pelas potências coloniais europeias e estas não foram sujeitas à “humilhação” sofrida pelo Japão. Visitar Yasukuni é o grito de revolta que resta a esta parte da sociedade.

“Esta longa tradição de homenagem e comemoração é uma questão de soberania nacional e não deve ser sujeita a distorções pela interferência e propaganda exterior”, declarava um grupo de deputados por altura da visita de Abe a Yasukuni.

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