O cinema é um milagre

Com Na Via Láctea Emir Kusturica, qual Fénix, renasce das cinzas, ou das misérias em que havia caído o seu cinema, com uma prodigiosa obra-prima que é o seu filme mais arriscado e também uma súmula, convocando inúmeras memórias dos anteriores e incitando à sua revisão e reconsideração.

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Sendo este o filme em que Kusturica enfrenta directamente as feridas das guerras na Jugoslávia, o fio da narrativa é outro: é possível o amor em plena guerra? Petr Nasic

Emir Kusturica (n. 1954) é um realizador controverso que, como poucos, suscita as mais extremadas opiniões. E é assim controverso por duas ordens de razões. Por um lado as propriamente cinematográficas, pela adesão ou rejeição imediata, epidérmica mesmo, que suscitam a desmesura e imaginário figurativo dos seus filmes. E, por outro, pela sua trajectória política durante a guerra na ex-Jugoslávia e suas sequelas, bem como pelas suas idiossincracias megalómanas – e note-se que estas últimas são matérias de facto e não da subjectividade de apreciações.

Kusturica destacou-se logo com Recordas-te de Dolly Bell?, Leão de Ouro para a melhor primeira obra em Veneza em 1981 e foi consagrado com O Papá Está em Viagem de Negócios, Palma de Ouro em Cannes em 1985, muito claramente duas obras de “jovem cineasta”, duas revisitações sob prisma íntimo da História  da Jugoslávia comunista de Tito, os anos 60 na perspectiva de um adolescente, no primeiro filme, a de 1950 narrada por um miúdo, no segundo.

O seu cinema evoluiu entretanto num sentido desmesurado que, podendo até nalguns casos estar inscrito em matérias do real e da História ou, na mesma ordem de razões, da cultura e sentir de uma comunidade específica, no caso os ciganos, é feito de excesso e “para além” do real, num “sobre-real” mesmo, quando não até taxativamente “surrealismo”. E assim se sucederam O Tempo dos Ciganos (1989), a viagem americana de Arizona Dream (1993) e dois absolutos delírios, a apoteose de Underground (nova Palma de Ouro em Cannes, 1995) e o regresso aos ciganos com Gato Preto, Gato Branco (1998). Só que…

Só que ocorreu com Kusturica o horizonte negativo dos cineastas, dos artistas, que operam nesse estreito fio de risco que são a desmesura e o excesso. A Vida é um Milagre (2004) era (é) uma catástrofe também ela absoluta, e Promise me this (2007, nunca estreado em Portugal e um fracasso internacional) um “monumento” de auto-indulgência e auto-citação insuportavelmente repetitivo.

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O realismo íntimo dos primeiros filmes, Lembras-te de Dolly Bell? e O Papá Está em Viagem de Negócios

Seria Kusturica “um caso arrumado”? Deve haver uma prevenção genérica com este tipo de catalogação e ter a disponibilidade suficiente para ainda se deixar ser surpreendido – já me ocorreu mais que um caso em que considerei um realizador já “assunto encerrado” e depois haver um filme que me levava a reconsiderar. Além disso´, e no caso concreto, com Na Via Láctea Kusturica, qual Fénix, renasce das cinzas, ou das misérias em que havia caído o seu cinema, com uma prodigiosa obra-prima, absolutamente espantosa, que é o seu filme mais arriscado e também uma súmula, convocando inúmeras memórias dos anteriores e incitando à sua revisão e reconsideração.

Pegar ou largar

Este é, por demais claramente, um caso de “pegar ou largar”. Compreendo que haja rejeições veementes do filme mas por mim estou “pegado”, e não sou eu que “pego” o filme, é ele que se “pega” a mim, logo desde o assombroso primeiro plano do falcão na montanha – fica-se “colado” ao ecrã. Este é um daqueles raríssimos casos em que temos de repor a questão de base, perdida na sucessão de visões de filmes, ou até na voracidade do consumo: o que é o Cinema?

O aparato e a arte cinematográfica têm uma capacidade ímpar de indagar, captar e registar os indícios do Real e da História, constituindo-se como uma experiência do mundo tanto mais relevante quanto é rápida e alargada a sua possibilidade de difusão. Mas a arte cinematográfica é também espectral e fantasmática, propiciadora de espantos e assombrações. São de algum modo, ainda que transfigurados, os dois polos existentes desde os primórdios, Lumière ou o real, Méliès ou a ilusão.

E porque se repõe a questão com Na Via Láctea? Porque o filme anuncia-se, num cartão logo ao princípio, ser baseado em histórias reais, e aborda uma ineludível tragédia real, a das guerras na ex-Jugoslávia (inclusive de modo muito mais frontal que Underground, que tinha supostamente como quadro a II Guerra Mundial, embora não deixe de ser óbvia que era uma metáfora das turbulências do desmembramento do antigo país, que se torna explicito no final, com o bocado de terra que se separa e a derradeira frase, “era uma vez um país”), e todavia transcende em absoluto qualquer realismo, de modo inaudito e até “miraculoso”.

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O cinema Kusturica extravasando para além do real, com alucimações, hipnoses, sonhos, levitando: O Tempo dos Ciganos e Underground

Eis também o que nos conduz a uma “digressão” pela obra de Kusturica.

Ele estudou na FAMU, a famosa escola de Praga, e nessa sua obra cedo se dá a ver a decisiva influência dos filmes checos de Milos Forman (antes da invasão soviética e do seu exílio), o “realismo íntimo” mas também de implicações geracionais e sociológicas dos maravilhosos O Ás de Espadas (1964) e Os Amores de uma Loira (1965), depois a dança incendiária e carnavalesca de O Baile dos Bombeiros (1972).

Lembras-te de Dolly Bell? evoca irresistivelmente O Ás de Espadas e de modo mais lateral Os Amores de uma Loira, e não foi nada fortuito que a inesperada Palma de Ouro a O Papá Está em Viagem de Negócios tenha sido atribuída por um júri presidido por Forman.

Só que com as personagens principais de um e outro já havia práticas ou ocorrências que, ainda que não saindo do quadro do real, eram de âmbito digamos que “para-normal”: o Dino de Dolly Bell praticava “hipnose, auto-sugestão”, inclusive com o seu coelho (começo logo no “anunciador” primeiro filme do inacreditável bestiário que Kusturica foi reunindo), o Malik de O Papá tornava-se sonâmbulo.

Mas havia ainda outra recorrência. O primeiro plano do primeiro filme era um homem, o “controleiro”, o pregador do partido, com grossos óculos escuros e o encarregado que se ocupava dos miúdos era chamado de “Quatro Olhos” pelos seus espessos óculos; isso tinha também Mirza, o irmão mais velho de O Papá…. Ou seja, desde os primeiros filmes Kusturica punha em cena uma condição “reforçada” de visão, mas também distorcida, o que voltava a acontecer com o rapaz que é personagem principal do filme seguinte, O Tempo dos Ciganos, que também usa óculos muito graduados, com a particularidade acrescida de a lente esquerda estar tapada - e o Kosta interpretado pelo próprio Kusturica de Na Via Láctea reforça a visão com um monóculo!

E, claro, desde os primeiros filmes havia a música, as cançonetas e os bailes, em roda-viva, que nos dois filmes de guerra, Underground e este agora, se tornam delirante dança macabra.

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Na Via Láctea é um filme que nos faz “acreditar” que o cinema pode ser “um milagre” Marcel Hartmann

Crucial na filmografia foi a opus seguinte, O Tempo dos Ciganos: não só o cinema de Kusturica, já para além do real, “entrava em levitação” (estado que a partir daí nunca faltaria), coma a estrutura precisamente do tempo deixava de estar comprimida e uniforme, antes havendo cenas e sequências longuíssimas que, nos seus melhores momentos, neste filme e nos posteriores, têm o caracter de alucinações hipnóticas. E começava a ser patente a proximidade com o universo de Fellini – mas disso já falaremos.

O circo privado

Alucinações, hipnoses, sonhos (Arizona Dream se chama o belíssimo filme americano – mesmo que o realizador tenha antes achado a experiência um pesadelo), fantasmagorias – o real e o “sobre-real”, quando não ocorre ser taxativamente “surrealismo”, afirmam-se como o universo distintivo do autor. É um cinema de “visões”: se há muitas personagens com questões de vista (neste agora há um olho de vidro), os ângulos de visão multiplicam-se até ao uso recorrente da grande angular (mas como é possível filmar intensamente em exteriores com essa lente?, o que sucede em Na Via Láctea, e é um dos mais destacados prodígios ou “milagres” do filme), e há com frequência “visões”.

E, em paralelo, há o continuado bestiário: o coelho, a pomba e os cães em Dolly Bell, os pombos e os cães de O Papá…, o peru e o gato do Tempo dos Ciganos, as tartarugas e o porco de Arizona Dream, o macaco, o papagaio, os gansos, etc.., etc…em Underground, os gatos, cães, peru, patos… de Gato Preto

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Derek Hudson/Getty Images

Ocorre haver animais em filmes, muitos cães, cavalos, pombos e gatos sobretudo, mas nada que se assemelhe ao circo zoológico de Kusturica. Cabe sim mencionar que há dois animais que “são” personagens principais de filmes e até lhe dão título, evidentemente o burro de Au Hasard Balthazar (1966) de Robert Bresson e o falcão de Kes (1970) de Ken Loach. Um burro e um falcão, que coincidência, vem a calhar…

Por muitos animais que haja em filmes de Kusturica, não há precedente para o estatuto que ele dá em Na Via Láctea ao falcão, ao burro, ao urso e à serpente, inclusive creditando-os como intérpretes no genérico final.

A serpente é um caso particular. A história que a envolve (mais que uma vez aliás) é dramaturgicamente da maior importância e o realizador refere-a sempre como um dos acontecimentos reais em que se baseou, o de um soldado russo que no Afeganistão foi enrolado por uma serpente que de facto o salvou de um tiroteio. Mas a serpente não é propriamente “ensaiável” e controlável, e nessas cenas há efeitos especiais de tratamento digital. Mas os outros, com quem obviamente Kosta/ Kusturica tem uma “relação pessoal”, são mesmo animais dele, parte do “circo privado” que mantém e com o qual até se desloca. Pode-se suspeitar aliás que essa foi uma razão determinante para uma das maiores dificuldades do filme, o facto de Kusturica ser também protagonista.

Mas como conseguiu ele estar atrás da câmara, com movimentos extremamente complexos e incríveis “orquestrações” de figuras e eventos, e estar ao mesmo tempo frente a ela, como actor principal?! É da ordem do prodígio, mas se é de um virtuosismo imenso não é reduzível a isso, é o espantoso “investimento pessoal” do autor neste filme. Fica-se boquiaberto e rendido – eu por mim fico.

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A peculiaridade do “circo privado” leva-nos às idiossincracias de Kusturica e à sua megalomania. O narcisismo vedetista da pose de rock star com que ele andou à frente da No Smoking Band (até fez um documentário sobre ele e o grupo) é coisa menor comparado com a construção de uma cidade para a rodagem de A Vida É um Milagre, a qual, chamando-se Andricgrad, em homenagem ao Prémio Nobel da Literatura Ivo Andric, autor de A Ponte sobre o Drina (a “cidade” fica junto aos locais referidos no romance), é uma “kusturicalândia”, uma Disneylândia nos Balcãs.

E que interessa isso para a consideração do seu cinema? Importa porque coloca a interrogação desse cinema não ser mais que exibicionista (o que muitas e respeitáveis pessoas acham), suscitando a tal questão da característica felliniana, inegável em Kusturica. Ora “felliniano” é coisa que não sou de todo, o que não me impede de achar que há filmes, e esses são obras-primas (Amarcord, E la Nave Va… ou a tocante homenagem ao circo que é I Clown) em que ele se “transcendeu”.

“Transcendência” é um conceito que ocorre a propósito de Na Via Láctea, sobretudo depois dos dois imensos desastres anteriores.

Citei dois polos do cinema, Lumière e Méliès. Cabe referir, a título de paradigmas, um outro, Dreyer e Buñuel, o ascético e crente e o surrealista e herético. O título Na Via Láctea deriva de ser pelo leite que a misteriosa mulher ordenha das vacas e entrega a Kosta que se estabelece a proximidade entre os dois, mas remete também para a desmesura cosmológica do filme, no modo como intenta criar um universo.

O tão surrealizante Kusturica não podia contudo desconhecer que Na Via Láctea se chama o mais herético dos filmes daquele que é “o” cineasta surrealista, Buñuel. Não podia desconhecer, note-se, mas pelo contrário o epílogo até é com a conversão de Kosta em monge ortodoxo. Não é por esse religioso final que se invoca um paradigma com Dreyer, mas porque um prodígio maior do filme é fazer-nos “acreditar” nele, questão de “crença” portanto. Não é de modo nenhum preciso ser crente para acreditar no milagre em A Palavra de Dreyer. De outro modo de todo diferente e sem estar a fazer comparações, Na Vida Láctea é um filme que nos faz “acreditar” nele, em que o cinema pode ser “um milagre”.

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Mais importante é a possível objeção ética ao filme como não só legitimação da posição pró-sérvia do autor (e, de resto, até da sua conversão ao cristianismo ortodoxo) como, mais grave, de branqueamento de crimes de guerra. Não é nada inocente, antes pelo contrário é motivo de perplexidade, que Kusturica tenha situado o filme na Krajina, “república sérvia” em território croata, em que houve gravíssimos crimes, ou proceda ao seu “ajuste de contas” com a intervenção ocidental nas guerras da Jugoslávia, apresentando como “a má da fita” uma brigada da  SFOR (Stabilisation FORce), os destacamentos enviados pelo Nato, embora ao abrigo de uma resolução do Conselho de Segurança.

Compreendo a objeção e respeito-a, mas ainda assim acho que o cerne é outro. “Esta guerra não é connosco” diz a velha aldeã, e o par da “Noiva” e Kosta não estão envolvidos na guerra, são sim cercados por ela. Não sendo nada fortuito que este seja o filme em que Kusturica enfrenta directamente as feridas das guerras na Jugoslávia, é divergente o fio da narrativa: “é possível o amor em plena guerra?”.

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