Debbie Reynolds: a graça da rapariga da porta ao lado

A actriz era a antítese dos sex symbols femininos que a década de 1950 impôs no cinema americano, de Marilyn à hiperbólica Jayne Mansfield.

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AFP/STRINGER

Acabou por ser um desfecho muito triste, esta história da morte, num intervalo de escassas horas que certamente deve pouco a uma simples coincidência, da filha Carrie Fisher e da mãe Debbie Reynolds. Talvez esta sequência trágica para o que em si mesmo já era uma tragédia – a morte, ainda jovem, da Princesa Leia – amplie a dimensão da comoção provocada pela morte de Debbie, que hoje, em termos “globais”, era provavelmente muito menos célebre do que Carrie.

Continuava a ser uma “instituição americana”, com presenças recorrentes na televisão e na imprensa, e esporadicamente nos círculos do teatro e do music hall, que foram os que sobretudo a acolheram a partir dos anos 70, quando começaram a rarear as ofertas de bons papéis em produções cinematográficas. Em todo o caso, a ligação entre mãe e filha, assim tragicamente confirmada pela morte de ambas, era um dado evidente, atestado por décadas de um relacionamento complexo por vezes publicamente vivido, e que de algum modo também se ofereceu em “espectáculo”, num filme de Mike Nichols, Recordações de Hollywood (Postcards from the Edge, estreado em 1990), com um argumento semi-autobiográfico assinado por Carrie Fisher e onde de forma mais ou menos velada se reflectia a história da relação entre mãe e filha.

Mas quem foi, no cinema, Debbie Reynolds? Terá sido uma das melhores intérpretes daquele tipo de figura a que os americanos chamam a “girl next door”, a “rapariga da porta ao lado”, uma idealização de uma figura feminina do quotidiano, sem nenhuma característica extraordinária mas investida de todas as virtudes que esse quotidiano tem enquanto símbolo do famoso “modo de vida americano”. Uma espécie de simplicidade animada por uma energia descomunal, tanto quanto por uma graça discreta. Debbie, que se impôs nos anos 50, era a antítese dos sex symbols femininos que essa década impôs no cinema americano, de Marilyn à hiperbólica Jayne Mansfield.

E a sua graça era essa: uma desenvoltura que se afirmava pela acção, não apenas pela presença. Como o confirma que tenha sido o grande cinema de acção dos anos 50 americanos – obviamente, o cinema musical – a descobri-la e a impô-la. Debbie era praticamente uma desconhecida quando se viu a contracenar com Gene Kelly e Donald O’Connor, actores e bailarinos famosíssimos, naquele que foi o momento decisivo da sua carreira, o Serenata à Chuva, dirigido a meias por Kelly e por Stanley Donen (que já agora registe-se, num ano com tantas mortes célebres, tem 92 anos e ainda é vivo). Aquela cena final com a canção You’re My Lucky Star é capaz de quebrar o coração a qualquer um, e é o momento em que nasce porventura, um perfil de actriz que então ainda não existia ou estava em desuso, feita duma mistura nada espampanante de verticalidade e fragilidade. Como um anúncio de uma figura com a aura de uma Shirley MacLaine, porque também podíamos imaginar Debbie no Apartamento ou no Deus Sabe Quanto Amei. Talvez a Debbie tenham faltado, na sua carreira futura, os Wilders e os Minnelis do mesmo calibre, mas houve Mulligans e Hathaways. Já não foi nada mau.

E no tal filme de Nichols, a actriz que interpreta o papel da mãe foi mesmo Shirley MacLaine.

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