Rui Calçada Bastos não tem o mundo na mão

Exposição que se revela numa sensibilidade às coisas do mundo, Walking Distance sugere um olhar retrospectivo em torno de viagens, encontros e obras.

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Veja-se a relação que se joga entre a imagem das marcas de tinta na estrada de Interruptions and Imperfections #7 e a escultura de caixotes de cartão
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Walking Distance começa com o som de passos e um mapa, antes de revelar o itinerário que as restantes obras desenham. Fotografias e esculturas, um filme, coisas que assinalam viagens e trabalhos de uma vida individual. Esta exposição não é uma retrospetiva, mas surge atravessada por um olhar retrospectivo. Depois de mais de uma década a residir em Berlim, Rui Calçada Bastos regressou em 2015 a Lisboa e convida-nos a olhar lugares por onde passou, superfícies que fotografou, objectos que fez. Mostra-nos uma relação com o mundo.

O mundo em Walking Distance começa num território afectivo, Love Map, Walking Distance. Trata-se uma colagem de mapas de cidades (Budapeste, Berlim, Paris, Lisboa, Estocolmo e Riga) em que Rui Calçada Bastos foi construindo a sua biografia. O som suave e forte dos passos escapa da superfície do “mapa amoroso” antes de conduzir o espectador à sala onde se exibem os outros trabalhos. A passagem é suave, discretíssima. Do mundo encolhido, por meio da cartografia, sobre o qual Rui Calçada Bastos parece soberano, somos levados à mundanidade que é indissociável do seu trabalho. Embora a distância permaneça, a escala reduz-se. Descemos às ruas em que recolheu imagens, aos encontros que inspiraram o seu pensamento.

Nas imagens fotográficas vêem-se caminhos na paisagem, traços deixados pela acção humana, objectos abandonados. Foram realizadas em lugares e anos diferentes e selecionadas, num processo de montagem, pelo artista. Nesse sentido, correspondem não apenas a um itinerário organizado no espaço físico da galeria, mas a um itinerário pessoal, quase íntimo: antes de as colocar nas paredes, Rui Calçada Bastos revisitou-as no seu arquivo, recordando lugares, experiências, percursos, pessoas; terá, também, reencontrado outras obras.

As fotografias identificam estradas, muros, soalhos, paredes, objectos; marcas do artifício humano abandonadas ou esquecidas. Mas não ficam encerradas numa vertente documental, comunicam uma vibração que a ultrapassa, suscitando diálogos com outras peças. Veja-se a relação que se joga entre a imagem das marcas de tinta na estrada de Interruptions and Imperfections #7 e a escultura de caixotes de cartão. É como se as fotografias se colocassem num equilíbrio, nem sempre seguro, entre a realidade do mundo (de onde vieram) e experiência no domínio da arte. Essa é um das tensões que pontua Walking Distance. Rui Calçada Bastos é, em simultâneo, um viajante e um artista, alguém que vê e que transfigura o que vê. O seu olhar permanece sensível às imagens do mundo, mesmo quando estas se afiguram como as mais banais. Tal sensibilidade permite surpreender o fantástico (em Los Angeles), descobrir a relação cromática entre duas superfícies (em Ponta Delgada) ou o desaparecimento (a marca do terço da parede em Ghost' #3). E nessa transformação das coisas pelo olhar, o espectador torna-se cúmplice do artista: aquela falha na parede podia ser um desenho, as marcas no pavimento escuro sugerem a aparição de uma pintura. Mas logo Walking Distance acentua o seu cariz mundano e biográfico, evidente no trabalho realizado com caixas de cartão que se estende ao tecto da galeria numa subida irregular, imperfeita, instável.

Metáfora possível de viagens, de partidas e regressos, não revela nada ao espectador a não ser uma materialidade precária, bem mais frágil que a dos pilares de ferro que suportam a galeria. A relação com os objectos fotografados assoma de novo e não é apenas formal. Pressente-se a mesma afecção pelas coisas que os homens utilizam e abandonam no quotidiano, bem como pela necessidade de iniciar novos percursos, novos caminhos. Rui Calçada Bastos não tem o mundo na mão, vive e é do mundo (como sugere a intervenção na parede O Mundo na Mão, na qual um livro, com o mesmo título, permanece fora do alcance do espectador). Restar-lhe-á, insinuam as imagens do filme Spectateur Eternel, refugiar-se no mundo interior, da introspecção, da esfera privada, como espectador de si mesmo, no qual cada instante da sua existência pode ser uma criação contra o esquecimento. Tal possibilidade surge contrariada num último instante, quando um plano de uma cidade se abre diante do espectador. Rui Calçada Bastos, como artista do mundo, está prestes a partir mais uma vez.

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