Políticos e serviços de informações: os outros réus

No julgamento do chamado “super-espião”, o poder político executivo e parlamentar foi também ele julgado e condenado pela postura negligente que tem revelado ano após ano.

A sentença condenatória do ex-director geral do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), onde ficou provada em sede judicial o acesso ilegítimo a dados pessoais, violação do segredo de Estado e devassa da vida privada, poderá ser o fim do processo para meia dúzia de réus e o epílogo de uma novela de gosto duvidoso alimentada na praça pública por estratégias de defesa e pelas fugas de informação a que a nossa justiça e o seu infinito arrastamento nos têm habituado.

No entanto, não é certamente o culminar do julgamento político sobre o sistema de informações português nem das suas relações com os órgãos públicos que o têm tutelado e fiscalizado. Embora não materialmente na sala do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, estiveram presentes no banco dos réus Governos, Assembleia da República e Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa.

Os sucessivos Governos de Portugal têm revelado desde há muitos anos uma gritante negligência na forma como lidam com os serviços de informações portugueses. Se antes da criação do cargo de secretário-geral do SIRP, em 2004, a tendência de privatização dos serviços e de gradual afastamento do serviço público eram já identificáveis, com a subalternização dos Serviço de Informações de Segurança (SIS) e do SIED perante um secretário-geral que paulatinamente se tornou no director, não de jure mas de facto dos dois serviços, o “enquistamento” do sistema de informações agravou-se de forma sensível. Ao contrário do que acontecia anteriormente, onde os serviços eram tutelados por diferentes ministérios, hoje apenas o secretário-geral despacha com o Governo — salvo raras excepções — e a versão da realidade aí produzida resulta única e exclusiva do único interlocutor do Governo, ou seja, o próprio secretário-geral.

Ora, no chamado “julgamento das secretas”, o actual secretário-geral, no cargo desde 2005 (leu correctamente, 2005), foi director-adjunto do SIS, onde o chamado “super-espião” se encontrava colocado; o actual secretário-geral chamou o mesmo personagem para seu chefe de gabinete por ocasião da sua nomeação para SIRP e, como se não chegasse, chamou-o posteriormente para director-geral do SIED. Estranham alguns que o “super-espião” considerasse natural a sua nomeação como secretário-geral. Só alguém menos atento não o veria como sucessor natural do actual secretário-geral, Júlio Carneiro Pereira, com elevada probabilidade de ser proposto pelo último.

Perante as evidências, algum Governo desde 2010/2011 até aos dias de hoje se lembrou de responsabilizar politicamente o secretário-geral do SIRP, aliás, equiparado por lei a secretário de Estado? Admite-se que a dependência do primeiro-ministro possa contribuir para alguma falta de atenção e de disponibilidade para o SIRP; porém, se assim é, adapte-se o sistema à realidade e convoque-se um legislador competente.

Ao Parlamento competem atribuições de fiscalização genéricas. Em matérias mais específicas, sujeitas ao regime do segredo de Estado, o Parlamento tem revelado uma permanente e gritante incapacidade não apenas de fiscalização genérica mas de proposição. Pior, tem-se visto frequentemente enredado nas novelas dos serviços, desde os tempos do então ministro Veiga Simão até ao recente “julgamento das secretas”, durante o qual foram reveladas relações de proximidade entre o arguido e os diversos deputados através da pertença a certos grupos de interesses. A alegada reforma das “secretas” não abona especialmente a favor do papel parlamentar, constituindo uma reforma de improviso, remendada e de eficácia duvidosa, se não mesmo irrealista, a reboque da agenda política do momento. Uma reforma feita sob a “espuma” da política que consegue não tocar em qualquer das questões centrais que fragilizam o sistema, reforçando até (pasme-se) as atribuições de um secretário-geral cuja razão de ser se esgota em cada fragilidade revelada dos serviços e do sistema (a última da quais no caso do oficial de informações Carvalhão Gil, suspeito de vender informações ao um serviço estrangeiro).

Há alguns anos escrevi neste mesmo jornal sobre o “ombro amigo” do SIRP. Referia-me à relação amiga, compreensiva e relaxada existente entre o Conselho de Fiscalização do SIRP e o próprio SIRP, à penosidade das conclusões de cada relatório anual dos fiscais e à timidez dos critérios seguidos, transformando o relatório numa caixa-de-ressonância do SIRP. Já mais recentemente se abordou a necessidade de o Conselho de Fiscalização adoptar uma postura profissional e de fiscalização efectiva sobre a gestão dos serviços, nomeadamente sobre os processos e os critérios de recrutamento, sobre a formação, a gestão do orçamento e os gastos ditos operacionais, incluindo as chamadas “despesas especialmente classificadas”. Para que o alargamento das atribuições do Conselho possam ocorrer de forma efectiva, é essencial que este órgão se afaste dos acordos politico-parlamentares e seja tutelado por um órgão de soberania capaz de actuar sobre o Governo. Este órgão só poderá ser o Presidente da República. Sendo destinatário da produção dos serviços de informações, o papel de fiscalização do Presidente, por via de um conselho na sua dependência, está justificado na própria natureza do cargo e das suas atribuições.

O poder político executivo e parlamentar foi também ele julgado e foi também ele condenado pela postura negligente que tem revelado ano após ano. Sempre críticos quando vítimas da chamada “judicialização” da política — o recurso a meios judiciais cautelares para impedir ou boicotar decisões políticas —, os nossos governantes e parlamentares renderam-se comodamente aos timings da justiça, encontrando o pretexto para nada decidirem enquanto à sua volta os serviços de informações do Estado se foram desfazendo sob o papel de embrulho de uma estratégia de marketing, enfeitada por conferências, seminários, escolas, acções de pedagogia, observatórios e festas de aniversário.

Neste cenário desolador, só faltam mesmo serviços de informações e elite política.

Consultor em inteligência estratégica

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