Bradley Wiggins nunca se acomodou, mesmo quando estava a ganhar

O ciclista britânico retira-se aos 36 anos após uma carreira de muitas vitórias, na estrada e na pista. Ganhou cinco títulos olímpicos, mas foi o triunfo no Tour que lhe deu fama mundial.

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AFP/ERIC FEFERBERG

Não foi por acaso que Bradley Wiggins termina a carreira como Sir Bradley Wiggins. O britânico ganhou na pista e na estrada, nos Jogos Olímpicos e na Volta a França em bicicleta, a correr numa equipa e a lutar sozinho contra um cronómetro. Foi com uma imagem de todas essas conquistas e recordes que Wiggins anunciou ontem o final da sua carreira aos 35 anos. Todas as camisolas amarelas, de arco-íris, todas as medalhas e todos os troféus mal cabem nessa fotografia que serve como testemunho para uma carreira em que “Wiggo” viveu o seu sonho de infância.

“Tive a sorte de viver o meu sonho e cumprir os meus desejos de criança de ganhar a vida num desporto pelo qual me apaixonei aos 12 anos”, foi a mensagem que Wiggins deixou para fechar duas décadas a ganhar a vida em cima de uma bicicleta. Retira-se como o britânico mais medalhado de sempre em Jogos Olímpicos (oito medalhas, incluindo cinco de ouro, entre 2000 e 2016), como o recordista da hora, como o dono de múltiplos títulos mundiais, mas, sobretudo como o primeiro britânico a triunfar no Tour numa altura em que os britânicos não ganhavam no Tour.

Depois de Wiggins, claro, veio Chris Froome, tricampeão do Tour, mas antes dele, não havia ninguém que lutasse pela camisola amarela. E foi essa vitória em 2012 que o catapultou para a fama mundial, mesmo que, antes disso, já tivesse no currículo seis títulos mundiais e três títulos olímpicos. Mas era no ciclismo de pista, que é mais um viveiro para especialistas de sprint e contra-relógio do que para futuros vencedores do Tour. Só que, depois de anos a fazer corridas rápidas à volta de uma pista, Wiggins decidiu-se pela estrada, uma especialidade completamente diferente, com incontáveis horas a pedalar no meio de um pelotão em subidas e descidas, à mercê dos elementos.

Em 2004, depois de conquistar o ouro olímpico na perseguição individual, este era o plano de Wiggins. “Vou treinar na Austrália, correr algumas clássicas e entrar no Giro. Se correr bem, depois vou ao Tour, dar o máximo no prólogo e tentar fazer a volta até ao fim. Quando chegar aos 30, posso ser um corredor competitivo de top 10 nas grandes voltas”. A sua previsão só falhou por um ano. Em 2009, na sua sexta participação numa grande volta, Wiggins arrancou um quarto lugar (transformado em terceiro depois da desclassificação de Lance Armstrong) e mostrou que a transição para a estrada correra bem.

O verdadeiro salto aconteceu depois, com a formação da Sky, que também era uma equipa com o objectivo de levar um britânico ao topo do Tour em cinco anos. A equipa foi para a estrada em 2010 e em 2011 já ganhava etapas nas grandes voltas (duas no Tour e duas na Vuelta), colocando Froome e Wiggins no pódio da prova espanhola. No ano seguinte, e entre polémicas sobre quem merecia ser o líder da Sky ele ou Froome, Wiggins chegou aos Campos Elísios com o “maillot jaune” (ganhou os dois cronos individuais e aguentou-se bem na montanha), símbolo do triunfo naquela que muitos consideram como a prova desportiva mais dura de sempre.

Esse Verão de 2012 foi mesmo de amarelo e ouro para “Wiggo”, que triunfou no contra-relógio olímpico dos Jogos de Londres em pleno Hampden Court, numa altura em que os britânicos andavam nervosos pela falta de medalhas nos seus próprios jogos. No ano seguinte, o seu plano era conquistar o Giro e o Tour, mas desistiu em Itália e já não foi a França. A sua carreira nas grandes voltas já tinha terminado e seria Froome a tomar as rédeas do Tour, com três vitórias nas últimas quatro edições.

Wiggins ainda andou pelas “clássicas” e por voltas mais pequenas, mas já tinha perdido o estatuto para Froome, com quem não tem uma relação muito próxima. Deixou de pensar no Tour, e voltou à casa de partida, o ciclismo de pista. Ainda conquistou o título mundial de “crono” em 2013 e 2014 (já o tinha conquistado em 2011), e 2015 já foi um ano de preparação para aquela que seria a sua quinta participação olímpica, com um novo recorde da hora e títulos europeus na pista. Iniciou o ano seguinte com medalhas nos Mundiais de pista e chegou ao Rio de Janeiro para liderar a equipa britânica de perseguição na conquista da medalha de ouro, 16 anos depois de ter sido o mais novo do quarteto que conquistou o bronze em Sydney 2000.

Nem tudo correu bem a Wiggins em 2016, já que ele foi um dos citados nos documentos divulgados por piratas informáticos que mostravam os atletas que tinha autorização especial para consumir determinados medicamentos que estavam na lista de substâncias proibidas – Wiggins sofre de asma e alergia ao polén, e, por isso, pediu três vezes a excepção para uso terapêutico para receber injecções de triancinolona, um esteróide anti-inflamatório para alergias e problemas respiratórios.

Foi uma longa e gloriosa carreira para Bradley Marc Wiggins, um rapaz de Londres nascido em Gent, na Bélgica, a 28 de Abril de 1980. A sua naturalidade belga foi consequência da ocupação profissional do pai, um ciclista australiano chamado Gary Wiggins, que abandonou a família quando Bradley tinha dois anos. Depois disso, “Wiggo” viu o pai, um alcoólico e toxicodependente, apenas uma vez, pouco antes dos Jogos de Sydney, quando era um jovem adulto em busca do seu passado. Foi um encontro que não correu bem e Wiggins nem sequer foi ao funeral do pai, morto em circunstâncias violentas numa rua de Newcastle, na Austrália.

Esse fantasma ainda assombrou Wiggins nos primeiros anos de anos de carreira. Tinha uma obsessão por cerveja belga e, como revelou na autobiografia, chegava a beber 12 “pints” (um pouco mais de meio litro) por dia, um hábito nada recomendável para um atleta de alta competição. Foram nove meses em que não tinha nada para fazer e em que se aproximou perigosamente do alcoolismo, mas deixou de beber quando nasceu o primeiro dos seus dois filhos. Uma confissão não muito habitual para alguém na sua posição, mas Wiggins não foi um desportista como os outros.

Era mais uma uma estrela “rock”, de penteado “mod” e patilhas (agora tem barba), visual inspirado em Liam Gallagher (dos Oasis), e que gosta de tocar guitarra - tocar com Paul Weller, famoso guitarrista britânico, foi, na sua opinião, melhor que ser campeão olímpico. E era aquele miudo que faltava às aulas, não para jogar futebol, mas para andar de bicicleta. “Os meus professores não sabiam que eu estava a fazer ciclismo. Simplesmente, não aparecia na escola”, contava em 2013 numa entrevista ao “Independent”. “Tens de vir para ter o diploma, era o que eles me diziam. Nah, deixem estar, já sei o que é quero fazer.”

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