Viagem de cordel ao coração do Brasil

De João Pessoa ao sertão da Paraíba, com passagem por um louco castelo em homenagem a Ariano Suassuna em Pernambuco, e pela Pedra do Reino onde D. Sebastião está encantado. Esta é uma viagem de cordel com banda sonora de Luiz Gonzaga, Elba Ramalho, Chico César e muita cantoria de repente.

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FOTO: Marcos Hermes

Dona Neomísia é católica num mar de evangélicos. No meio da reunião familiar no alpendre da casa, chama a neta que há muito vive em Portugal: “Você assoveia?” Ao que esta responde, meio intrigada: “Assoveio, sim”. E a anciã, por trás das lentes grossas que já pouco lhe alumiam a vista, contesta: “Não pode não, é pecado!”

No Alto Sertão da Paraíba, na cidade que homenageia Pombal, como aliás por todo o estado, vive-se na omnipresença de Deus: nas conversas, nos rituais, na rádio, na televisão, nas referências histórico-culturais e no presente mais corriqueiro – os carros carregam-se de mensagens de fé, no muro de uma fazenda lê-se “Deus é grande já”.

A presença forte da religião por aqui vem de longe, do tempo da colonização portuguesa. Entre o obscurantismo da fé europeia, o animismo dos africanos e dos indígenas do Brasil se construiu uma sociedade de fé. Na história do sertão cruzam-se coronéis, cangaceiros, padres revolucionários, misticismos, profecias, milagres que se foram cristalizando pela dureza da existência.

Euclydes da Cunha, em “Os Sertões”, chama-lhe uma “mestiçagem de crenças” que, partindo de uma religião trazida por “gentes impressionáveis” de “misticismo feroz”, com “obsessão dolorosa” pelos milagres e “assaltado de súbitas alucinações”, se rebate com o “feiticismo do índio e do africano”, isto num ambiente malsão que ameaça mais do que recompensa.

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J. Borges é um dos maiores xilogravadores (também cordelista) da história dos folhetos

“O homem dos sertões (…) mais do que qualquer outro está em função imediata da terra. É uma variável dependente no jogador dos elementos. Da consciência da fraqueza para os debelar, resulta mais forte, este apelar constante para o maravilhoso”, refere Euclydes da Cunha.

O imaginário sertanejo está carregado de figuras místico-míticas que ainda hoje exercem a sua influência social. Diz, num ensaio, Emílio Tarlis Mendes Pontes, professor na Universidade do Ceará, “essa influência é presencial ou remota, repassada de geração em geração, de maneira inculturada ou autóctone”.

Luiz Gonzaga, um dos companheiros sonoros na viagem até ao sertão, canta em “Légua Tirana” uma peregrinação a Juazeiro do Norte, no Ceará, para pedir chuva ao Padre Cícero (ou Padim Ciço), ainda hoje uma das maiores referências religiosas no Nordeste brasileiro: ”Quando o sol tostou as fôia e bebeu o riachão/ fui inté o Juazeiro pra fazer uma oração./ Tô vortando estrupiado mas alegre o coração./ Padim Ciço ouviu minha prece fez chovê no meu sertão.”

Em terra ingrata e rude, o céu baixo parece quase ao alcance dos dedos, e a estrada desmultiplica-se em rectas e curvas quase querendo fugir da monotonia cromática da seca. Como referia Graciliano Ramos, “não há o deserto, mas há muito de deserto”. Ou, nas palavras de José Américo de Almeida, em “A Bagaceira”, “como era feia a natureza resseca na sua mudez de pau e pedra”.

Ariano Suassuna, nesse romance majestático que lhe tardou 12 anos de escritura chamado “Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do vai-e-volta”, mistura na descrição da paisagem o realismo e o misticismo tradicional numa síntese venturosa:

“Da terra agreste, espinhenta e pedregosa, batida pelo sol esbraseado parece desprender-se um sopro ardente que tanto pode ser o arquejo de gerações e gerações de Cangaceiros, de rudes Beatos e Profetas, assassinados durante anos e anos entre essas pedras selvagens, como pode ser a respiração dessa Fera estranha, a Terra – esta Onça-Parda em cujo dorso habita a raça piolhosa dos homens.”

A alma do repente

O sertão é termo com definição irregular, começou por ser o interior, aquilo que estava para lá da colonização litoral do Brasil (daí Guimarães Rosa falar da existência de vários e o livro de Euclydes da Cunha se chamar “Os Sertões”). Hoje identifica-se como uma das quatro sub-regiões em que se divide o Nordeste, estendendo-se pelos estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí e Rio Grande do Norte.
Suassuna considerava o Nordeste o “coração do Brasil” e a Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco como o coração do Nordeste. O escritor que se dedicou a dar nobreza à cultura popular e escreveu esse vicentino “Auto da Compadecida”, obra maior do seu teatro armorial e da dramaturgia brasileira, é suspeito nesse cardiovascular adjectivo, tendo ele nascido na capital da Paraíba e morrido na capital de Pernambuco.

Lenine, músico do Recife, fala de uma alma comum: “A impressão que eu tenho é que do [rio] São Francisco para cima até ao Ceará existe uma mesma alma cultural”. Uma alma que Ivanildo Vila Nova, grande referências da arte do repente, a cantoria que descende dos cantares ao desafio e das desgarradas portugueses e é arte maior nordestina, imaginou com um “idioma nordestinense”, “a bandeira de renda cearense” e “Asa Branca”, a mais famosa das canções de Luiz Gonzaga, como hino oficial e o folheto (o cordel) como “símbolo oficial”.

Esse repente, cujo mote é “Imagina o Brasil ser dividido/ E o Nordeste ficar independente”, foi transformado, nos anos 1980, numa canção de intenso orgulho nordestino por outra paraibana como Suassuna e Vila Nova, Elba Ramalho.

Vila Nova tem mais de 50 anos de carreira e foi o grande impulsionador do profissionalismo dos cantadores de repente – ele que se dedica desde 1974 apenas a essa arte. É por ele que na Paraíba, um estado onde não há uma companhia de teatro regular, onde não há editoras com dimensão para garantir que um escritor possa viver da sua escrita e em João Pessoa, a capital, resta apenas uma livraria fora de centros comerciais (livraria de rua como lhe chamam), onde os grandes músicos acabam por rumar ao Recife, a Salvador, ao Rio de Janeiro ou a São Paulo para fazer carreira, é por Ivanildo Vila Nova que muitos repentistas conseguem fazer disso a sua única profissão.

“A gente consegue sobreviver razoavelmente bem. Nem é a melhor profissão do mundo, nem é a pior. Dependendo da estrela, do talento, da simpatia que cada um gera com o público, se vive muito bem”, confessa Rogério Meneses Sobrinho, cantador há 32 anos.

Há festivais a acontecer em dezenas e dezenas de cidades do Nordeste e “hoje já tem festival de cantoria em Brasília, em São Paulo, tem no Rio de Janeiro”, a que se somam “cantorias nos restaurantes, nas churrascarias, nas fazendas, em universidades, em empresas, nos teatros”.
“Antigamente, o cachet da cantoria era arrecadado em uma bandeja, hoje isso ainda acontece nas famosas cantorias de pé de parede [não há palco e o cantador encosta-se a uma parede]”, explica Rogério Meneses, mas já só como tradição, porque “a maioria dos contratos com os cantadores é feita com cachet fixo ou com uma percentagem da bilheteria”.

No Grande Encontro de Repentistas de Campina Grande, realizado o mês passado no teatro municipal da segunda maior cidade da Paraíba, Rogério Meneses lá estava ao lado de Ivanildo, entre alguns dos melhores cantadores. O evento era organizado pelo filho deste, Ipanox Vila Nova, um dos mais importantes divulgadores da arte.

“A Paraíba é a mãe do repente, do improviso”, explica Ipanox. “Eu não conheço ninguém, mesmo jovem, que não tenha na família alguém que não tenha lido um cordel, que não tenha um disco de cantador, um CD de repentista. É algo nosso, que está arreigado na mente, no coração, na alma, não tem como sair. Cultura de qualidade é isso aí: o repentista fazendo verso na hora, de improviso, sem saber o que vai cantar, sem ensaiar nada. Isso não morre nunca, é nosso, é genuíno.”

Os 550 lugares do teatro municipal estavam ocupados com um público entusiasta, entendido, vibrando com as críticas políticas, com as rimas mais felizes, mas, sobretudo, com as disputas ofensivas entre os cantadores, improvisos de insulto que faziam os espectadores soltarem gargalhadas e exceder-se nos aplausos.

A cantoria é um desafio entre cantadores, uma disputa poética de improviso que é feita a partir de motes que não conhecem, normalmente escolhidos pelo público ou pelo júri e que devem corresponder a dois versos da poesia improvisada, que é normalmente em heptassílabos ou decassílabos com rima perfeita.

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As pedras são dois monólitos de 33 e 30 metros de altura

“É cansativo, é uma coisa em que a pessoa precisa estar-se formando diariamente durante toda a vida. É uma arte muito técnica”, garante Raulino Silva, 35 anos, 17 de profissionalização, um dos melhores cantadores da actualidade e vencedor do Grande Encontro de Campina Grande, derrotando Ivanildo Vilanova na meia-final.

Qual é o segredo? “Transpiração, estudar, ler, se aprimorar, treinar os géneros da cantoria, ser calmo psicologicamente para não se aperrear na hora das palmas para a estrofe do parceiro e nem quando o material é um pouco difícil de cantar. Em geral, o preparo psicológico e intelectual é o segredo”, garante Raulino.

Os repentistas têm fãs, seguidores; Raulino viu-se obrigado a posar em muitas fotografias com admiradores e admiradoras, vendeu CD e deu autógrafos no hall do teatro municipal. E não era só gente mais velha, havia mais novos, igual ou ainda mais entusiasmados.

“A cantoria está melhor, está mais profissionalizada, abriram-se mais portas”, diz Rogério Meneses. Agora é preciso “o surgimento de novos cantadores, de novos cantadores responsáveis, pessoas de bom comportamento, de boa índole que consigam levar para a frente o nome do repente como arte bonita, uma arte respeitosa, não uma arte desqualificada, desmoralizada”, acrescenta Raulino.

Antes de chegar às grandes salas e às televisões, antes de se transformar em arte urbana (“houve uma inversão geográfica, há 40, 50 anos, ela acontecia mais na zona rural, aconteceu o fenómeno do êxodo rural e a cantoria pegou carona e veio para a cidade”, refere Rogério Meneses), a cantoria fazia parte da cultura popular do sertão.

Os cantadores eram poetas populares que andavam por todo o sertão cantando versos próprios e alheios, expressões de uma cultura considerada menor e olhados de soslaio pela dita “alta cultura”. Cantadores como o Dioclécio, de que José Lins do Rego fala em “Pedra Bonita” (“eu era um cantador, um pobre que vivia nas feiras tirando o pouco para viver”), como o Quaderna, narrador do romance de Suassuna, ou João Melchíades que lhe ensinou tudo, faziam parte do imaginário popular, actuavam em feiras, em botecos, e não em teatros como o de Campina Grande que recebeu o encontro de repentistas no mês passado.

O rap-rep

Aconteceu aos desafios dos cantadores, num percurso mais dilatado no tempo, aquilo que aconteceu ao rap e às batalhas de rappers, com o qual têm muito em comum. Aliás, os primeiros estudos sobre as relações entre o repente e o rap são do dobrar do milénio e chegou mesmo a haver um Encontro Rap-Rep em Campina Grande, em 2007.

Zé Brown, repentista de Pernambuco com tradição na divulgação da cultura hip hop no Brasil nos anos 1990 com o grupo Faces do Subúrbio, é um dos pioneiros na mistura de rap, repente, coco de embolada (a cantoria que em vez da viola usa o pandeiro; o ritmo é mais rápido). O seu primeiro álbum em nome próprio, lançado em 2011, chamava-se “Rap Repente Rap”. Com novo disco pronto para sair no princípio de 2017 – intitulado “Poesias do Povo” –, lançou no mês passado o single de apresentação: “Chegou a Hora”.

Entre os vários convidados do disco, está a dupla veterana de coco de embolada Caju & Castanha que tem um tema chamado “No rap ou no repente” e já em 2002, numa entrevista à “Central da Música”, afirmavam sem rodeios: “Eu acho que a embolada é o verdadeiro rap, porque ele é feito da embolada, tanto é que esse ano passado gravamos com o Rappin’ Hood e mais um pessoal que procurou a gente, ela se encaixa em diversos géneros.”

Emicida brincava, em 2013, no programa da TV Brasil “Estação Periferia”, apresentado por Hot Black: “Comecei a desconfiar dos gringos, quando conheci o repente, quando fui estudar a história do bagulho [da coisa], será que esses gringos não veio aí, viu o bagulho, voltou para lá e inventou essa história do rap? Porque é muita semelhança, tem uma batida crua e um jeito de cantar falado e totalmente cravado sobre a batida. Por amor de Deus, a gente podia até meter um processo de plágio nos caras!”

RAPadura Xique-Chico, nascido em Fortaleza, capital do Ceará, mas a viver em Brasília desde os 12 anos, também criou um rap infectado com géneros nordestinos, incluindo repente e embolada. Na sua mixtape de 2010, “Fita Embolada do Engenho – Rapadura na Boca do Povo”, está esse grito de afirmação e indignação chamado “Norte Nordeste me Veste” que presta homenagem a Patativa do Assaré, poeta, compositor e improvisador cearense: “O nordeste é poesia/ Deus quando fez o mundo/ Fez tudo com primazia/ Formando o céu e a terra/ Cobertos com fantasia./ Para o sul deu a riqueza,/ Para o planalto a beleza/E ao nordeste a poesia.”

“Guerrilha popular”

Quem também vive do improviso desde o princípio, em 1974, é o grupo Jaguaribe Carne, dos irmãos Pedro Osmar e Paulo Ró – Jaguaribe, do bairro de João Pessoa de onde são originários; Carne, do movimento antropofágico, criado por Oswald de Andrade nos anos 1920 como forma de ligar a cultura vinda do exterior (o outro externo) com a cultura dos ameríndios e dos afrodescendentes (o outro interno).
Agarrando na experiência dos Beatles com as músicas do mundo, do rock com a música indiana; do rock com a música contemporânea, Yoko Ono, John Cage; o que os Jaguaribe fizeram foi misturá-la com a Paraíba, com o Brasil, na cidade de João Pessoa.

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Mas a mais curiosa homenagem é mesmo o Castelo Armorial, uma de um empresário amigo do escritor Ariano Suassuna

“A gente sempre teve ligação com o lado ancestral que vem de vocês [portugueses], que é aquela coisa dos cavalos-marinhos [auto popular representado por alturas do Natal], do bumba-meu-boi [dança de folclore com personagens humanos e animais], do pastoril [ou folguedo, bailado que integra as festas natalícias], todos os maracatus [ritmo musical, dança e ritual de sincretismo religioso originário de Pernambuco]”, diz Pedro Osmar.

Na sala do Centro de Documentação e Pesquisa Musical José Siqueira, o maior arquivo musical da Paraíba, do qual é coordenador, Pedro Osmar garante que o Jaguaribe Carne conseguiu “fazer a síntese de tudo isso, não só tocando, não só cantando, não só compondo, mas também debatendo com os artistas da cidade numa entidade que a gente criou por conta própria chamado Musiclube da Paraíba”.

Há 20 anos, tratou-se do momento mais importante da “reflexão de pegar tudo isso e colocar no palco e na música paraibana”. E o que daí surgiu agitou para sempre o meio musical do estado e do Nordeste.

Chamaram-lhe “vanguarda popular” e Osmar apelidou-se de “guerrilheiro cultural”. “Meu Deus, como é diferente, como é experimental, como é revolucionário, como é novo”, afirma Elba Ramalho logo no começo da curta-metragem documental de 2013 “Jaguaribe Carne: alimento da Guerrilha Cultural”.

Chico César chegou a fazer parte do grupo, “o lado mais lírico do nosso trabalho”, refere Osmar. “Eu nunca fui lírico, eu sempre achava que tinha de pegar nesta mesa e levantar”, porque “a ideia é destoar, não quero ficar fazendo como se estivesse tudo às mil maravilhas”.
Esteticamente, Jaguaribe Carne “oscila entre Geraldo Vandré e Hermeto Pascoal”. As “letras fortes” têm a ver com Vandré e a geração mimeógrafo dos poetas brasileiros, da poesia alternativa; e Pascoal que “sintetiza muita coisa da música do mundo”. Bem como Naná Vasconcelos, Egberto Gismonti, Airto Moreira.

“O que a gente faz não é música erudita, certamente, é uma música politizada, interessada em participar num engenho cultural mais comprometido com as mudanças. É claro que, às vezes, é só conversa mesmo, não tem mudança nenhuma, a gente não consegue propor nada, mas é a tentativa, uma tentativa que às vezes dá certo”.

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O espaço da literatura de cordel dedica uma exposição aos 150 anos do escritor, percursor do género e autor de centenas de títulos

Artista multifacetado (desenhou capas para o primeiro disco, outras foram desenhadas por artistas convidados – nenhum tinha uma capa igual), Pedro Osmar transformou-se numa referência na Paraíba e no país.

“Ele pensa a tradição e todo o tempo coloca elementos de contradição em seu trabalho”, refere Chico César. “Isso o torna único e ao mesmo tempo seminal para as gerações que vêm trabalhando com arte, principalmente música, em meu estado. É um grupo conhecido e reverenciado por todo o Brasil, com trabalhos académicos e filmes realizados sobre a sua produção”, acrescenta.

“O Jaguaribe Carne vai para os bairros, começa a envolver-se com os grupos de actuação guerrilheira de cultura, expressão que eu criei, para poder se enturmar com música, com poesia, com dança, teatro, artes plásticas e hoje eu estou mexendo com cinema, mas tudo muito simples”, explica Pedro Osmar.

O documentário mais recente sobre ele é uma longa-metragem deste ano que começa agora a fazer o circuito dos festivais. Realizada por Eduardo Consonni e Rodrigo T. Marques, recorre ao nome de um tema do grupo para se intitular: “Pedro Osmar, prá Liberdade que se Conquista”.

“A cena da música paraibana tem muito a ver com essas coisas que a gente viveu, que a gente provocou, a gente provocou uma libertação. Se dependesse da realidade como um todo, todo o mundo seria armorial como Ariano queria, com aquele movimento armorial”, diz Osmar.

O armorial Suassuana

O movimento armorial foi lançado a 18 de Outubro de 1970 na igreja de São Pedro, em Pernambuco. Inspirado no teatro de García Lorca e da sua relação com o romanceiro popular espanhol, Suassuna lançou um movimento que pretendia criar arte erudita com base na cultura popular do Nordeste. Fosse na literatura, no teatro, na música, nas artes plásticas, na dança, no teatro, no cinema, na arquitectura.

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Mural de José Altino

Nas palavras do próprio Suassuna, lidas do manifesto nesse dia 18 de Outubro, a arte armorial “tinha uma ligação com o espírito mágico dos folhetos [literatura de cordel] do Romanceiro Popular do Nordeste”, com a música de viola, rabeca ou pífaro (pífano no Brasil), que acompanha os cantadores quando contam as histórias, com a xilogravura que ilustra as capas e com “o espírito e a forma das artes e espectáculos populares”.

De acordo com Carlos Newton Júnior, um dos principais especialistas no armorial, em entrevista de 2010 ao “Diário de Pernambuco”, Suassuna “cria uma poética como um conjunto de princípios baseado nas obras que ele admirava”. Ele não diz que Francisco Brennand era um artista armorial, mas usou o exemplo da sua obra plástica, sobretudo como ceramista, “para construir essa poética”. Quem diz Brennand, diz Gilvan Samico, considerado o maior xilogravador brasileiro.

Em termos literários, Suassuna acabara de escrever o seu romance da “Pedra do Reino”, que tardou 12 anos a completar (entre 1958 e 1970). Ao invés de capítulos, está dividido em folhetos. E apesar de não ser em verso rimado, como os cordéis, está povoado de citações deles, bem como de histórias, lendas e mitos do sertão da Paraíba.  

Em termos teatrais, já tinha escrito em 1955 o “Auto da Compadecida”, que teve a sua primeira grande representação armorial no Rio de Janeiro, em 1976, pelas mãos de um dos maiores actores e encenadores da Paraíba: Fernando Teixeira, fundador do grupo Bigorna em 1968.
Foi o próprio Ariano que o aplaudiu como “criador armorial”, numa encenação à laia de cavalo-marinho (folguedo cénico que, aliás, servira de inspiração a Suassuna). Fernando Teixeira afirma ter sido apanhado desprevenido pelo sucesso alcançado pela peça. “A enchente que deu foi assim inexplicável. A peça arrasou”, diz o encenador na sua casa em João Pessoa.

Lembra-se que nem se chegou a envaidecer com os elogios de Suassuna, separados que estavam pela ideologia; Teixeira, comunista; Suassuna, monárquico. “Acho que o magoou um pouco”, confessa.

Ainda para mais, porque, na altura, numa entrevista ao “Jornal do Brasil”, quis mesmo afastar-se da definição de armoralista, enfatizando as diferenças: “É interessante porque o meu teatro é mais para o teatro vivo do Peter Brook do que para o teatro armorial de Ariano Suassuna”.
“Não foi legal”, ajunta. “Foi pura presunção da minha parte, puta idiotice! Qual é o problema de você fazer teatro armorial?!” Até porque era mesmo. E hoje reconhece-o.

Dois anos depois da morte de Suassuana, Fernando Teixeira está a preparar outro espectáculo armorial. “Porra, o Ariano morreu e eu não fiz um segundo espectáculo, não dei continuidade ao projecto filosófico e artístico dele! Aí, pensei, vou fazer um espectáculo armorial – Machado realista armorial.” Machado é Machado de Assis, de quem adapta o conto “A Igreja do Diabo”.

“Peguei em Machado e transformei o conto num cordel. É tanto que eu não sei onde é Machado e onde sou eu. E fiz uma adaptação para a rua, tanto que é curtinho. Mesmo agora, com todas as músicas que estou introduzindo, é um espectáculo de 50 minutos.”

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O artista desenhou um dos enormes murais do Espaço Cultural, junto ao teatro Paulo Pontes

“A música é de um casal chamado Alice Lumi e Fernando Pintassilgo [antigo integrante do Quinteto Armorial de Pernambuco], eles são quem mais fez na busca armorial no mundo. Fernando é do comecinho da busca armorialista, que deu o marimbau [instrumento de duas cordas que é tocado com uma baqueta e um vidro, desenhado pelo Quinteto Armorial a partir de um sonho de Suassuna]”, refere o encenador.
Passadas quatro décadas é Fernando Teixeira quem vai voltar a ressuscitar o armorial no palco. Porque, como ele diz, “o teatro armorial é praticamente isso, aquela montagem do ‘Auto da Compadecida’”.

Irá em contra-ciclo com o teatro que actualmente se faz na Paraíba – o pouco que se faz, tendo em conta a falta de salas e de apoios – onde já “não há muito a influência da literatura cordel”, explica Fernando Teixeira.

A importância do cordel

Pode ser que o teatro tenha perdido essa ligação tão umbilical ao cordel mas ainda hoje esta literatura popular tem um papel importante na cultura da Paraíba e do Nordeste. Podem ver-se os folhetos à venda em muitos lados. E, como no passado, vão das histórias fantásticas e mitológicas, até casos recentes, passando por descrições das belezas de cidades - há até manuais para evitar acidentes de trabalho, editados por organismos oficiais.

Tarcísio Pereira, escritor, dramaturgo, encenador, actor nascido em Pombal, já escreveu tanto uma paixão de Cristo (“Cordel da Paixão de Deus”), como uma peça sobre educação e cultura no trânsito (“Cordel do Carro Encantado”). Em “Os Sete Mares de António”, socorrendo-se de um cantador nordestino e de um trovador português como narradores, levou o padre António Vieira para o universo do cordel.

Figuras importantes da história e da literatura são sujeitos e inspiração para os folhetos. Um conto de Tolstoy, a vida e obra de José Saramago, o “Manifesto Comunista”; os cordelistas alimentam a cultura popular de edições baratas, folhetos que na maioria das vezes só custam dois reais.
É claro que hoje perderam o lado utilitário noticioso que já tiveram no passado. Até ao advento da rádio, o cordel “foi uma espécie de jornal da população mais pobre, da população rural que estava no meio urbano e da população da zona rural”, explica Astier Basílio, da curadoria de cordel do Museu de Arte Popular da Paraíba (MAPP), em Campina Grande.

Crimes, acidentes, novas sobre o cangaço, os últimos milagres do padre Cícero eram escritos por poetas que andavam pelas feiras do Nordeste, do litoral ao alto sertão, a cantar versos e vender os seus folhetos. “Era um poeta pobre como seus leitores, que conhecia a linguagem desses seus leitores e comunicava directamente com eles”, acrescenta Basílio.

No MAPP, também conhecido como Museu dos Três Pandeiros, última obra arquitectónica de Oscar Niemeyer inaugurada faz agora quatro anos (13 de Dezembro de 2012), o espaço da literatura de cordel dedica uma exposição aos 150 anos do nascimento de Leandro Gomes de Barros, percursor do género e autor de centenas de títulos.

Foi em “O Dinheiro”, de Leandro Gomes de Barros, que Ariano Suassuna “se inspirou para compor a peripécia do ‘Auto da Compadecida’ em que é negociado o enterro do cachorro, com seus rituais litúrgicos, em latim”, conta Astier Basílio. “O episódio final do julgamento também tem uma ligação muito directa com o folheto do ‘Auto de São João da Cruz’”. E há ainda o cordel de “O Cavalo que Defecava Dinheiro”, que, na peça de Ariano, é um gato “adoptado como animal de estimação pela mulher do padeiro que é ludibriada pelo João Grilo”, o protagonista pícaro, inspirado na tradição da commedia dell’arte.

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Teatro Municipal de Campina Grande

Sebastianismo no sertão

Suassuna “era um grande leitor de Leandro Gomes de Barros” e de muita literatura de cordel. A história do Reino Encantado, profético e messiânico, que entre 1835 e 1838 no sertão de Pernambuco pregava com sacrifícios de sangue o regresso de D. Sebastião para instalar o governo dos justos, e que serve de base ao romance “Pedra do Reino”, foi transformado em lenda e mito sertanejo pelo cordel.

“Nessa terra fica a famosa Serra do Reino, na qual se erguem aquelas duas enormes pedras, estreitas, compridas e paralelas, que os nossos Sertanejos consideram sagradas, por serem as torres do Castelo, Fortaleza ou Catedral Encantada onde o meu bisavô, Dom João Ferreira-Quaderna foi Rei, ensinando de uma vez para sempre, que o Castelo está ali, soterrado por um cruel encantamento do qual somente o sangue nos poderia livrar, acabando de uma vez com a miséria do Sertão e fazendo todos nós felizes, ricos, belos, poderosos, eternamente jovens e imortais”, escreve Suassuna pela voz do seu narrador, Dom Pedro Dinis Quaderna, herdeiro do trono sertanejo.

As pedras (dois monólitos de 33 e 30 metros de altura) guardam ainda hoje a sua imponência, na Serra Talhada, nos limites de Pernambuco e Paraíba. Ali morreram 83 sacrificados à reencarnação de Dom Sebastião, encantado nas pedras, 53 deles durante três dias de transe místico-alucinogénio em que o rei se envolveu em delírios sexuais e sanguíneos que haveriam de marcar o seu fim (massacrados ele e os fiéis pela tropa) e o fim do sonho de “instaurar o Quinto Império do Brasil, sonho messiânico e profético de António Vieira e de outros visionários”, como escreve Ariano.

O escritor paraibano pediu que os seus ossos fossem enterrados na Pedra do Reino, onde num terreiro em círculo se dispõem actualmente as várias figuras de 3,5 metros de altura que transformam o lugar numa espécie de santuário pagão. Suassuna chamou-lhe Ilumiara da Pedra do Reino.

Desenhadas por Ariano e esculpidas por Amaro Barbosa e terminadas, após a sua morte, por seu filho, Jailson, as esculturas representam a Sagrada Família (Jesus, Maria e José), os santos populares do Nordeste (Santo António, São João e São Pedro), Santa Ana, Santa Madalena e Santa Teresa d’Ávila, os três reis (João António, João Ferreira e Pedro António) e respectivas consortes (rainha Quitéria, princesa Isabel e rainha Josefa).

Além disso, figura também uma homenagem ao Aleijadinho. Segundo nos explica Valdir José Nogueira, secretário de Turismo de São José de Belmonte, historiador, estudioso do sebastianismo e apaixonado por Portugal, ali se situa uma das extremidades do eixo cultural entre o Nordeste e Minas Gerais, que Aleijadinho considerava fundamental para o Brasil.

Muito em consequência da maldição lançada pelo padre Ibiapina sobre as pedras, estas ficaram até meados do século XX como local abandonado, servindo apenas para esconderijo de cangaceiros. Bom coito este - de pé, na pedra que servia de púlpito ao rei-pregador-sebastianista, se consegue ver longe no sertão.

A partir dos anos 1950, 1960, reataram-se as caminhadas até ao local. Em 1993, o prefeito comprou para São José de Belmonte (que curiosamente está em processo de geminação com a portuguesa Belmonte) aquelas terras que sempre foram alvo de contendas limítrofes e em 1995, a Associação Cultural Pedra do Reino criou as Cavalgadas que encenam todos os anos, na última semana de Maio, as disputas dos Doze Pares da França, os cavaleiros de elite do rei Carlos Magno que Quaderna, o narrador de Suassuna, usa como inspiração para a sua fidalguia sertaneja, de pobres tornados aristocratas.

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Quem vive do improviso desde o princípio, em 1974, é o grupo Jaguaribe Carne, dos irmãos Pedro Osmar e Paulo Ró

Um castelo encantado

São José de Belmonte vive da relação com Suassuna e a Pedra do Reino, tendo inaugurado no final de Novembro um portal dedicado ao escritor na principal entrada da cidade. Mas a mais curiosa homenagem é mesmo o Castelo Armorial. Iniciativa do empresário Clênio de Novaes Barros, amigo do escritor, fascinado pelo seu movimento e que cumpre, deste modo, o sonho de menino de ter um castelo.

Segundo o irmão, Clécio, que nos leva de visita guiada, até há dois anos, na sua última contabilidade aos gastos, iam investidos na edificação sete milhões de reais (1,9 milhões de euros ao câmbio actual).

Inspirado na obra de Suassuna, o castelo colorido de azul e vermelho, está cheio de bichos mitológicos que povoam as lendas do sertão e se encontram espalhados pela obra do escritor, com duas torres representando as cruzadas onde D. Sebastião perdeu a vida na batalha de Alcácer Quibir, uma vermelho-mouro e outra azul-cristão. Em lugar de destaque, Pedro Quaderna com a sua coroa de prata e couro.

Lá dentro, além de uma biblioteca de mais de 700 livros doados por Ariano – e que inclui um volume de uma bíblia satânica –, há cerâmicas de Joaquim de Tracunhaém, iluminogravuras de Suassuna, que juntam texto e imagem em forma de poesia visual e xilogravuras de José Francisco Borges ou, simplesmente, J. Borges, um dos maiores xilogravadores (também cordelista) da história dos folhetos. Se o cordel é património imaterial da humanidade, J. Borges é, hoje, a sua versão material e humana.

A arte do folheto chega às galerias

A arte de imprimir com tacos de madeira inventada pelos chineses foi desde o início parceira dos textos no cordel. Durante mais de um século, a xilogravura teve um papel secundário, ilustrador, até ganhar autonomia e se libertar para as paredes dos museus e das galerias.

Enquanto J. Borges expunha na Galeria Stähli, em Zurique, e no Museu de Arte Popular de Santa Fé, nos Estados Unidos, em 1992, um ano depois, em João Pessoa, apresentava-se a exposição “Xilogravura: do cordel à galeria”, que haveria de chegar em 1994 ao Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (curiosamente outro paraibano). “Sem dúvida foi a maior mostra com artistas xilógrafos já realizada no país”, escreve Dyógenes Chaves Gomes no “Dicionário das Artes Visuais da Paraíba”.

Como o sonho de Ariano Suassuna, a xilogravura do Nordeste ganhava estatuto de arte e tornava-se erudita. Nomes como os de J. Borges, José da Costa Leite, José Altino alcançavam fama. Altino desenhou mesmo um dos enormes murais do Espaço Cultural, junto ao teatro Paulo Pontes.

“Ariano influenciou muito nessa condução” da xilogravura da rua para os museus, conta Rose Catão, pintora e xilogravadora. “Ariano era um académico e se vir as gravuras dele, são bem da terra, voltadas para o Nordeste, mas são obras de arte”, acrescenta.

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O MAPP, também conhecido como Museu dos Três Pandeiros, última obra arquitectó-nica de Oscar Niemeyer inaugurada faz agora quatro anos

Faltam livros

Curiosamente do tão venerado Suassuna não se vê um livro à venda em São José de Belmonte. Aliás, tal como em nenhum outro lado da Paraíba, por onde fomos passando. Nem mesmo na única livraria de rua ainda aberta em João Pessoa, a Livraria do Luiz, onde Ricardo Pinheiro, o proprietário, nos conta que para ainda estar de portas abertas “o segredo é o amor”, porque “vender cultura” no Brasil “é complicado”.

É preciso recorrer, em João Pessoa, aos livros usados do Sebo Cultural, o maior alfarrabista online do país (com 350 mil títulos disponíveis) para conseguir uma edição de “A Pedra do Reino” – pelo menos até o livro ser reeditado em 2017, na mesma altura em que for lançada a obra em que Suassuna trabalhava desde os anos 1980: “Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores”.

O proprietário do Sebo Cultural, Herberto Coelho de Almeida, deixou a engenharia civil aos 29 anos para se dedicar aos livros usados – o sebo, como se chama no Brasil. Tinha três mil livros quando abriu, hoje, além da sede, são mais três lojas pequenas e um sebo móvel que este mês começa a circular pelas praças e escolas de João Pessoa. Além de “patrocinar, apoiar e realizar actividades artísticas”, Herberto lançou-se até na edição, embora de forma comedida, um ou dois títulos por ano. Um deles é a biografia de Fernando Teixeira (“Fernando, o Peregrino”), de Tarcísio Pereira.

“A Paraíba não tem grandes editoras, com tradição de lançar autores; não existem. O que há são grandes parques gráficos que também se registaram como editoras e até produzem livros muito bonitos, com padrões nacionais. Mas não lançam autores, lançam uma enciclopédia, um livro didáctico para escola”, explica Tarcísio Pereira.

“O escritor tem de ir à luta, pagar do próprio bolso, participar de concursos públicos, editar através dos projectos oficiais”, acrescenta o escritor e dramaturgo. “Eu publico os meus livros assim, não tenho editora.” E em Janeiro ou Fevereiro lançará mais um, “La Bodeguita”, com o qual concorreu ao último prémio Leya que não foi atribuído.

Lá para Julho conta ter acabado “Encanto Mambembe”, em cuja história se baseou para o libreto da “Ópera do Mambembe Encantado”, com música de Eli-Eri Moura, que estreou em Setembro na primeira Bienal de Ópera Atual (BOA), no Rio de Janeiro. O termo mambembe identifica um grupo de saltimbancos que andam de terra em terra a apresentar as suas pequenas encenações voltadas para o gosto ingénuo do povo. A ópera e os saltimbancos, como Ariano queria, em verdadeira harmonia armorial.

Esta reportagem deve muito à preciosa ajuda de Tarcísio Pereira. O meu obrigado.

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