O ídolo juvenil que virou celebridade global e nem sempre se adaptou

Deu-se a conhecer com os Wham! e impôs-se a solo, mas nunca conseguiu livrar-se por inteiro dos paradoxos da sua condição.

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George Michael numa conferência de imprensa no Japão em 1988 Michael Putland/Getty Images
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George Michael em 1989 Jim Steinfeldt/Michael Ochs Archives/Getty Images
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George Michael em 2007 num concerto na Dinamarca Scanpix Scanpix / Reuters
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Nos Jogos Olímpicos de 2012 em Londres Reuters/KAI PFAFFENBACH
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Nos Jogos Olímpicos de 2012 em Londres Reuters/STEFAN WERMUTH
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Reuters/BENOIT TESSIER

A história da cultura popular está repleta de narrativas análogas. Alguém que dança bem, canta melhor e é bem-parecido acaba por formar um grupo (neste caso a dupla Wham!), tornando-se numa referência juvenil. Mais tarde, acaba por se lançar a solo, revoltando-se nessa dinâmica quase sempre contra quem o moldou no seio da indústria (managers, agentes ou editora) quando ainda não tinha total autonomia, num processo de emancipação desencadeada pelos discos vendidos e o estrelato global.

Depois surgem novas questões. Na difícil passagem de ídolo juvenil para uma imagem mais madura perdem-se e ganham-se admiradores. É um período crucial em que a linha ténue que separa a vida privada da pública tem de ser gerida da melhor forma. Não é fácil o equilíbrio entre satisfazer milhões de expectativas e ter uma voz própria. São incontáveis as histórias de celebridades que tiveram dificuldade em sê-lo.

George Michael foi mais um desses casos. Quando ele e Andrew Ridgeley se conheceram em 1979, na escola, eram apenas dois rapazes que queriam viver da música. Começaram por fazer parte de uma banda de ska, os Executive, antes de lançarem vários singles de sucesso e o álbum Fantastic (1983). Como é evidente, os Wham! foram produto de um contexto bem definido, os anos 1980, quando a MTV e por consequência a cultura visual, através dos videoclipes, se tornaram indissociáveis da música.

Tudo parecia feito para impressionar no ecrã. Madonna ou Michael Jackson conseguiram utilizar o formato para construir uma carreira. Outros alcançaram uma exposição menos constante, como os “novos românticos” de visual elaborado e nome grandioso (Spandau Ballet, Classix Nouveaux ou Duran Duran), e outros da mesma geração como os Culture Club, Kajagoogoo ou Sigue Sigue Sputnik. Entre eles estavam duos que pareciam ter sido concebidos para parecerem improváveis, como Pet Shop Boys, Soft Cell, Erasure, Yazoo, O.M.D., Style Council ou Wham!, em que invariavelmente um dos membros era fulgurante e o outro apagado.

No caso dos Wham!, a função principal de Andrew nos videoclipes parecia ser sorrir ao lado de George, enquanto simulava que tocava guitarra. Não espanta que o cantor e compositor da dupla tenha manifestado desde cedo o desejo de seguir um percurso a solo, trabalhando para um público mais adulto e sofisticado. O pretexto deu-se a partir de desavenças com o manager e agente do duo, Simon Napier-Bell (que mais tarde haveria de estar por trás dos Take That). A despedida dos Wham! deu-se a 28 de Junho de 1986, no estádio de Wembley, em Londres, perante 72 mil pessoas.

George Michael queria ser levado a sério, descolar da imagem de ídolo juvenil e adquirir maior credibilidade artística. Os três primeiros álbuns a solo cumpriram com o desígnio, conseguindo afirmar uma visão artística própria, assimilando soul e funk, e compondo momentos de líbido pop ou baladas emocionalmente envolventes. Como tantos outros antes dele (basta pensar na fábrica de talentos que era a Motown dos anos 1960, de onde saíram Stevie Wonder ou Marvin Gaye), começou por ser um projecto de artista, para depois se transformar num artista de corpo inteiro.

O primeiro álbum a solo, Faith (1987), revelou-se um êxito, mas o cansaço de andar em digressão, combinado com depressão e dúvidas acerca da sexualidade, levaram-no a recusar-se a promover o segundo Listen Without Prejudice Vol. 1 (1990). Em 1992 entra numa batalha legal com a Sony, acusando a editora de o tratar como objecto e de não ter investido na promoção, acabando por perder em tribunal – voltaria à Sony em 2004. Também por isso o terceiro álbum, Older, haveria de sair apenas em 1996, contendo Jesus to a child, tributo a Anselmo Feleppa, um brasileiro que havia conhecido três anos antes e com quem teve uma relação amorosa.

Nessa altura ainda não havia declarado que era gay. Haveria de fazê-lo em 1998, depois de ter sido preso numa casa de banho pública na Califórnia, assumindo então, publicamente, uma relação com um homem de negócios de Dallas. Mais tarde parodiou a sua prisão no vídeo de Outside (1998), ao mesmo tempo que confessava que a sua primeira relação havia sido aos 27 anos e que apenas aos 24 havia aceitado a sua sexualidade.

A partir do final dos anos 1990, a sua vida privada – as drogas, as relações amorosas, as crises pessoais e os acidentes – dominou as notícias, e os intervalos entre novas edições notaram-se (só viria a lançar mais dois álbuns depois de Older). Havia sido sempre ambivalente em relação à condição de celebridade, falando muitas vezes da dificuldade de encontrar a harmonia entre o estatuto de figura pública globalizada e a vida privada, e sentia-se que era verdade.

Condução sob o efeito de drogas, inibição de conduzir, trabalho comunitário, semanas na prisão, alegações de actividade sexual em lugares públicos, um despiste quando conduzia sob o efeito de marijuana ou a quase morte por causa de uma pneumonia foram algumas das manchetes que sustentou ao longo dos anos, embora os fãs mais leais nunca o tenham abandonado, esgotando-lhe as digressões.

Na hora da morte parece ser a fase com os Wham! que cria mais ressonância junto de quem era adolescente nessa altura, o que é natural. Mas foi nos três primeiros álbuns a solo que afirmou o talento de forma mais sólida. A partir daí começou o jogo de espelho com a fama. Dele e nosso. As celebridades fascinam-nos. Algumas apelam ao sentido de protecção. Outras enjeitamo-las. Projectamos fantasias. Há pedaços da sua vida que invejamos e outros que agradecemos não experimentar.

George Michael mostrou-se nos 1980 quando a condição de celebridade estava a mudar. Madonna percebeu-o. A actividade musical não bastava. Havia que revelar segredos, prazeres, o corpo. Em retorno, tinha-se a cobertura da imprensa, a toda a hora. Dir-se-ia que ele, como tantas outras figuras (de Kurt Cobain a Amy Winehouse), nem sempre encontrou o balanço entre exposição pessoal e pública ou entre ter êxito e ser vítima dele, desejando soltar-se da imagem pop feita-por-medida dos tempos dos Wham!, mantendo ao mesmo tempo a consistência, a atitude sem compromissos e a capacidade de comunicar para uma audiência universal.

Tarefa difícil. Às vezes conseguiu-o, outras não. Quase todas as carreiras são assim. Existe quem aceite isso, e quem tenha dificuldade em fazê-lo. Ele parecia ter noção disso. A sua potencialidade advinha daí, as suas fragilidades e angústias também. Quem estava próximo dele assegura que morreu em paz. Ainda bem.

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