O monumento bachiano

Introdução ao universo monumental das cantatas bachianas.

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Para ouvir no Natal e em qualquer ocasião

Entre 1971 e 1989 ocorreu uma aventura sem precedentes na história do registo fonográfico: na Telefunken, na série Das alte Werk (de “música antiga”), Nikolaus Harnoncourt e Gustav Leonhardt gravaram a integral das cantatas litúrgicas de Bach. É difícil hoje ter a noção do interesse, da “devoção” e expectativa com que fomos seguindo essa aventura, sempre aguardando a publicação dos duplos LP em volume preciosos incluindo a reprodução das partituras — e infelizmente pelo meio surgiu o novo formato de CD (o conjunto são 60) e, pelo superior nível de leitura e também por razões logísticas do espaço ocupado, mudámos para o novo formato, quando o conjunto em vinis se constituiu como uma preciosidade única, hoje impossível de se encontrar ou então, caso sequer exista, a preço proibitivo. A publicação agora deste triplo cd, independentemente da oportunidade editorial de ser “alusiva à quadra”, impõe alguns esclarecimentos mas também a reavaliação de características do conjunto, nalguns itens até questionando percepções que tínhamos sedimentado.

Esclareça-se que são “cantatas de Natal” e não “as cantatas de Natal” que Bach escreveu muitas mais até porque cada uma se destinava a um dia específico do calendário litúrgico. As aqui incluídas são Christen, ätzet diesen Tag, BWV 63, Unser Mund sei voll Lachens, 110, Christum wir sollen loben schon, 121, Selig ist der Mann, 57 e Sehet, weich eine Liebe hat uns der Vater erzeiget, 64, por Harnoncourt, Gelobet seist du, Jesu Christ, 91, Darzu ist erschienen der Sohn Gottes, 40, Ich freue mich dir, 133 e Süsser Trost, mein Jesus kommt 151 por Leonhardt.

Embora ligeiramente antes, como que em prelúdio, Harnoncourt já tivesse feito soar a “revolução” (porque o foi em termos interpretativos e na nossa percepção de auditores da historicidade própria das obras musicais) com os seus registos da Missa em si menor, em 1968, e da Paixão Segundo São Mateus, em 70, foram as Cantatas que impuseram a noção de que as obras litúrgicas de Bach se destinavam a ser vocalizadas apenas por homens e meninos.

Mais tarde outros, e até o próprio Harnoncourt, não foram tão “puristas” e incluíram também vozes femininas, para uma superior elocução das partes de soprano. E, de facto, embora se tivesse apelado a (“aos”?) três superiores coros de meninos, de Viena, Hanover e Tölz, torna-se agora mais patente que essa é a debilidade maior da realização concreta. Há no entanto uma diferença que talvez não tivéssemos devidamente presente e se torna notória: Leonhardt, que de resto foi mais “purista” do que Harnoncourt, que em muito reveria os seus preceitos, já fazia recurso às vozes masculinas mas adultas do Collegium Vocale de Gent dirigido por Philippe Herreweghe (que se viria a tornar ele próprio um intérprete superlativo deste reportório), conferindo uma maior “estabilidade” às suas interpretações. Se porventura tínhamos inferidos que na realização instrumental havia ainda algumas debilidades, face ao apuramento que a prática continuada posteriormente permitiria, desenganemo-nos: não só o Concentus musicus de Harnoncourt como também o Leonhardt-Consort eram já excelentes, mormente nos sopros. E depois havia os solistas, alguns deles parceiros de eleição ao longo de todo o percurso e não raro sublimes, em especial os contratenores Paul Esswood e René Jacobs, o tenor Kurt Equiluz e o baixo Max von Egmond. Para além do “regresso às origens” das nossas actuais concepções musicais — Bach e o barroco como ora o entendemos —, para além da revisão das memórias, e para além das fragilidades, este conjunto de nove obras é uma introdução ao universo monumental das cantatas bachianas soberanamente eloquente. Para ouvir no Natal e em qualquer ocasião…

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