Muito atraentes

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

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PÚBLICO

Tal como há plantas, animais, pessoas, paisagens, automóveis, capas de livros ou bolos mais atraentes do que outros, há palavras que, em português, atraem, dentro das frases, os pronomes “o”, “a”, “os”, “as”, “me”, “te”, “se”, “nos”, “vos”, “lhe”, “lhes”, fazendo-os passar para antes do verbo, ou seja, alterar a ordem mais corrente, que é a de virem depois do verbo. Por exemplo, na frase “eu esqueço-me de tudo” o pronome “me” vem depois do verbo. Mas se pusermos a frase na negativa, o pronome muda de lugar: “Eu não me esqueço de tudo”.

Mais do que ao estudar as regras gramaticais, aprendemos ao ouvir dizer e ao ler, e decoramos palavras, locuções e construções de frases características da nossa língua que podem ser conferidas nas gramáticas, nos prontuários, nos dicionários, em caso de dúvida. E andámos razoavelmente durante muitos anos na aplicação dessas regras, até haver exposição intensiva a falantes — sobretudo falantes de programas televisivos — que disseminaram erros que já chegaram às traduções de livros, às legendas de filmes, séries e documentários, até à leitura de notícias nos “telejornais” dos vários canais de televisão nacionais, pois nenhum deles parece ter uma política de defesa da língua que passe pela formação dos seus redactores e locutores e pela contratação de revisores que consigam evitar essas ocorrências. E, assim, um erro que há alguns anos era desconhecido entre nós encontrou, no descaso do que é nosso, terreno propício para medrar, até as pontas das suas ramificações assomarem a janelas de onde esperaríamos melhores vistas.

São algo numerosas as palavras que atraem os referidos pronomes para antes do verbo (a que podemos chamar palavras atractivas ou atraentes) e enumerá-las exaustivamente com exemplos esclarecedores tornaria esta crónica num pastelão maior do que a maioria das barrigas linguísticas comportaria, exceptuando os que têm mais olhos. Lembremos as mais correntes, se eu for capaz de o fazer: “que”, “quando”, “porque”, “enquanto”, “se”, “embora”, as negativas “não”, “nunca”, “jamais”, “nada”, “ninguém”, os advérbios. Quem achar o assunto suficientemente atraente pode consultar “próclise” nas gramáticas ou na Internet (já agora, também poderá consultar “mesóclise”).

De todas estas, talvez a mais usada seja o “que”. Vejamos: “Falemos agora daquele navio que se partiu ao entrar na barra”. Lá está o “que” a puxar o “se” para si. Se não fosse aquele “que”, a frase seria: “O navio partiu-se ao entrar na barra”. Agora o que não pode ser é escrever ou dizer: “Falemos agora do navio que partiu-se ao entrar na barra”, tal como, infelizmente, ouvi num noticiário de um canal nacional de televisão, lido por alguém que o não achou estranho, errado, digno de correcção.

Para contrabalançar, insistamos: “Ainda bem que a vejo, querida senhora” (e peço-lhe que não consinta que lhe digam “ainda bem que vejo-a”), “não sei por que me esqueço sempre de agradecer a amabilidade dos meus leitores ...”, “jamais o diria em público”, “não o conheço”, “eu estava presente quando se conheceram”. E como não nos vamos encontrar de novo antes do dia de Natal, é forçoso que lhes deseje uma feliz comemoração dessa data, independentemente da forma como o façam.

Correio premente

De Z. Marcial, tenente-coronel na reserva, Arca de Água, Porto, recebi: “Exm.º Senhor, protesto veementemente pela falta da sub-rubrica ‘Correio premente’ da rubrica ‘Palavra de Aurélio’ da semana passada, já que essa sub-rubrica é o único lenitivo capaz de me fazer chegar até ao fim dos seus textos, um tanto xaroposos, da sua restante rubrica, mesmo que rime com barrica. Isso e a ‘Palavra Curiosa’, que não costuma ser má. Intimo-o a não repetir essa omissão. Eu até lhe achei graça por ter abordado o caso do ‘despoletar’ sem ter mencionado os cursos de Comandos, mas, como diz o outro, mais vale cair em graças do que ser engraçado...”. Caro Leitor, peço desculpa pela falha e pelo xaroposo. Corrigirei, caso as minhas habilitações o permitam.

Do leitor T. Azedo Mameluco, Swiss Cottage, Londres, recebi: “É possível falar de palavras sem falar de livros, de bibliotecas, de obras maravilhosas, dos tesouros dessas bibliotecas? Parece-me que não. A que se deve essa distracção?” Caro Leitor, não se trata tanto de distracção como de dispersão. Garanto-lhe que o assunto muito me interessa. A essa lista junto os alfarrabistas, que tão regularmente afectam a minha carteira. Falando apenas da área que me é mais próxima – a Baixa do Porto – como se resiste ao que se vai descobrindo em lojas como a Académica, Homem dos Livros, Lumière, Paraíso, Modo de Ler, João Soares, Chaminé da Mota, entre outras? Com muita dificuldade. Voltarei a isso.

Do lugar da Venda das Raparigas, freguesia de Benedita, concelho de Alcobaça, recebi de uma professora do ensino básico que deseja permanecer anónima a seguinte apreensão: “É preciso ler livros para se progredir na vida? No meu tempo, de norte a sul, do pobre ao rico, todos diziam que sim. Agora acumulam-se os exemplos de que para se chegar aos lugares mais rendosos não há necessidade nenhuma de ler livros (basta saber ler tabuletas): ser milionário, ser Presidente dos EUA e apanhar bivalves fora de época. Como motivar os meus alunos?...”

De Maria Bizantina, da União de Freguesias Merelim (São Pedro) e Frossos, concelho de Braga: “Confesso não ter tempo nem feitio para ler blogues, mas disse-me pessoa amiga que no seu dedica espaço à discussão do dia-a-dia das bandas filarmónicas nacionais e seus problemas. Como presidente do Clube Merelinense Olha o Eufónio, venho pedir-lhe o favor de publicar algumas linhas a alertar os cidadãos do nosso país para a injustiça de não conhecerem – muito menos acarinharem – o eufónio, instrumento de sopro também conhecido por bombardino ou barítono que toda a gente confunde com uma tuba. Note que não sou regente de banda nem instrumentista. Sou presidente de uma agremiação que fundei unicamente para promover o eufónio, tanto o instrumento como a designação. Rejeitamos ‘bombardino’ porque faz lembrar bombarda e, logo, guerras; rejeitamos ‘barítono’ porque parece ter alguma coisa a ver com bar, logo com bebidas brancas, logo com discussões e zaragatas, logo com guerras. Não, o eufónio – tal como o nome indica – é um instrumento de harmonia, de paz, e é em paz que deve ser escutado no seu habitat natural, o coreto. E se tanta gente há que adopta cães e gatos (incluindo aqueles cães e gatos que escrevem blogues sobre tudo), por que não adoptam eufónios, que cabem em qualquer apartamento e não precisam de ir à rua, a não ser a jardins com coretos, em dia de apresentação de bandas? Bom Natal.” Aqui fica satisfeito o seu pedido. Faço-lhe outro: segundo o “Novo Dicionário Corográfico de Portugal”, de A. C. Amaral Frazão (Editorial Domingos Barreira, Porto), o topónimo que indica como “Frossos” está registado como “Froços”, forma que é corroborada pelo “Vocabulário da Língua Portuguesa”, de F. Rebelo Gonçalves (Coimbra Editora, Lda). Por que não utiliza a sua agremiação para solicitar uma reunião na sua junta de freguesia e na sua assembleia municipal para suscitar a questão? Bom Natal.

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