Cultura da incultura vs incultura da cultura

Afinal o que é a liberdade e que liberdade (não) há para que esta que elegemos não interesse a moles humanas em crescimento exponencial?

Não vou deter-me – pesem as minhas convicções sobre o assunto – em leituras de agenda política. Escolho deter-me nas implicações sobre a morte anunciada das “democracias representativas”, interpretando-a como, no plano ideológico, o fim do pós-pós-modernismo. Sendo que por ideologia me refiro a algo mais, muito mais, do que uma cartilha política ou mesmo um tratado sobre a organização social e económica de um sistema, sobretudo numa ou noutra época histórica. Embora também tais elementos a integrem ou dela dimanem, com uma importância sociológica inultrapassável, ideologia é, antes de tudo, um conjunto de valores e objectivos de Vida em que o modelo que se constrói é tão só a materialização de anseios e práticas conformes a eles e expressos em princípios éticos.

A recente eleição de Trump e a antecipação de outros fenómenos idênticos no mapa político tem provocado uma onda de choque pelo inesperado. Um inesperado, afinal, bastante expectável, se se cavar fundo a coisa. O espanto, com tentativas de explicação contraditórias, medos, incompreensões e reacções, também em si primárias, sobre o primarismo desta tendência de massas é só sinal de desorientação. A incapacidade de perceber que a cultura da incultura, que brota, é devolvida ao espelho pela imagem virtual da incultura da cultura sofisticada e cínica, que definha. As análises, assentes na ilusão libertária, de que estamos numa sociedade aberta e não restritiva, cai com pés de barro, mal se olha para os dogmas que nessa mesma identidade diz conter, mostrando uma intolerância sobre quem não alinhe na defesa dela mesma e colando todas as demais interpretações ou tentativas de interpretação do fenómeno a antinomias simplificadoras.

E é justamente a partir daí que resultam os equívocos gerados pela vitória ideológica de um diktat único: seja o que está ou outro que se proponha substitui-lo, sem que se clarifique que, no real das opções prefiguradas, é mais o que os une do que o que os separa. Ou seja: a opção anti-stablishment é uma aparência, de duas disfunções do mesmo stablishment, ao nível das superestruturas que os enforma. Esbarrar e cristalizar na ‘chantagem’ do “ou nós, os que estamos, ou o abismo dos outros que aí estarão”, é tão populista quanto o populismo contido nas outras escolhas e, pior, absolutamente ineficaz para combater a atracção pela cultura da incultura, que é, antes do mais, uma reacção e nem tanto uma opção.

O desgaste e rejeição do stablishment culto é uma inevitabilidade, porque é um modelo, cada vez mais e mais, exaurido, indesejado, recusado, onde as massas se não sentem representadas. Não tanto no plano da organização política e administrativa do Poder, mas na sua roupagem, criada à imagem de supostas élites e com os tais dogmas do “politicamente correcto”. Trata-se da distância, da ruptura, que a pós-pós-modernidade cavou entre os cultores da incultura e a incultura dos cultos! Por muito que a intelligentzia funcional do sistema não consiga aceitá-lo, o certo é que as pessoas não querem “isto”. É inútil entrar em negação, procurando sofismas, agigantando “culpas” dos que que não levantam as mãos para travar o vento, como se tal fosse possível.  Sem perceber o facto, não há ponto de partida para sequer reconhecer a realidade. Tal atitude não é só estúpida: é potenciadora do que pretende combater.

A rejeição, mesmo que primária e à mistura com os mais diversos tiques de regressão civilizacional, assenta na recusa desta sociedade do vazio do espectáculo (expressão de que me socorro, conjugando Lipovetsky com Débord). A recusa deste “isto” é, mesmo que não assumida conscientemente, uma recusa ideológica; é mesmo que, iludida pelo discurso fácil, sinal de um descontentamento. Por isso seria bom começar por a encarar na sua afirmação massiva como consequência, e não causa, da falência deste ciclo antropo-civilizacional. Trata-se de algo muito mais profundo que o fim de um ciclo histórico. E é nesta falência que se operam, a partir da mesma raiz, manifestações tão aparentemente opostas, quanto desesperadas, como um Daesh, as xenofobias nacionalistas ou… o cláxon com que nas grandes urbes a impaciência reina sobre o Outro.

Repetir fórmulas semânticas, ainda por cima acompanhadas da inércia da acção, é como guardar a água do banho e deitar fora o próprio bebé. Há que ousar pensar diferente. Não estamos em vésperas de um holocausto de judeus, comunistas, homossexuais, ciganos ou assim. Estamos no perigo de um outro que consegue fazer desse horror inaceitável uma espécie de rajada ciclónica por comparação com o tornado que porá em perigo a sobrevivência da própria espécie. Por muito que desagrade às nossas fantasias, o processo histórico esgotou-se na fórmula a que chegámos. Não porque a História seja regulada por leis deterministas e tivesse de ser assim e menos ainda porque tenha um final. Mas assim aconteceu e assim é. Podia ser diferente porque é decidida pelos próprios seres humanos. Mas foi aqui que chegou e nesta ideologia se apresenta. Todavia, uma variante ideológica radical, no sentido amplo que se lhe deu, permitirá sair para fora de um poço e re-encetar novo caminho noutra direcção, de paradigmas-outros. O protesto, descontentamento e desilusão de nada servem. Como de nada serve ‘sacudir a água do capote’ e chorar os erros dos outros, sem começar por perceber os erros próprios.

Ou seja: afinal o que é a liberdade e que liberdade (não) há para que esta que elegemos não interesse a moles humanas em crescimento exponencial? E na procura de resposta, ou respostas, urge, sem medo de etiquetagens, reflectir sobre o que realmente nos trouxe de mau e de bom, no plano material, espiritual e ético, aquilo a que Kaczynski chamou a Civilização Tecno-Industrial.

castroguedes9@gmail.com

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