Morreu Michèle Morgan, a lenda dourada do cinema francês

Foi a primeira actriz a ganhar o prémio de interpretação feminina em Cannes. Agora, anunciou a família, "os mais belos olhos do cinema fecharam-se definitivamente".

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Com Jean Gabin em Cais das Brumas AFP
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No ano em que se tornou famosa, 1938 AFP
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A actriz num rally em Paris, em 1948 AFP
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O seu papel em A Sinfonia Pastoral valeu a Michèle Morgan o primeiro prémio de interpretação feminina da história do Festival de Cannes AFP
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Em 1989 AFP/GILLES LEIMDORFER

Uma das maiores actrizes francesas do século XX, Michèle Morgan, que com os seus olhos de um magnético azul esverdeado, e a sua sedução um tanto distante, fez sonhar várias gerações, morreu esta terça-feira aos 96 anos. "Os mais belos olhos do cinema fecharam-se definitivamente esta manhã", anunciou a família. 

Verdadeira star, Michèle Morgan foi a primeira actriz de sempre a ganhar o prémio de interpretação feminina no Festival de Cannes, em 1946, pelo seu papel de uma jovem cega em A Sinfonia Pastoral, de Jean Delannoy.

Então no cume da sua carreira, encarnava a mulher francesa distinta, o contrário da mulher-escândalo. Foi sem dúvida uma das enormes vedetas do cinema francês entre 1940 e 1960, antes de se afastar lentamente dos plateaux e de encontrar serenidade na pintura.

Nascida a 29 de Fevereiro de 1920 em Neuilly-sur-Seine, perto de Paris, Morgan via nessa circunstância um sinal do destino: "Este privilégio de envelhecer quatro vezes mais devagar do que os outros foi o primeiro da longa série de golpes de sorte que tive ao longo da minha existência."

Foi aos 18 anos que se tornou célebre graças a Cais das Brumas (1938), com o qual fascinará sucessivas gerações de espectadores. É nesse filme de Marcel Carné que Jean Gabin lhe murmura "Tens uns belos olhos, sabes..." e que ela lhe responde: "Beije-me".

A memória colectiva guarda dela a sua classe, os seus cabelos loiros e, sobretudo, a extraordinária intensidade do seu olhar cristalino. Herdaria por causa desses atributos o epíteto, usado até à exaustão, de "actriz mais bela do mundo". "Agasta-me um pouco que o repitam demasiado", dizia. No entanto, as suas memórias, publicadas em 1977, intitularam-se Avec ces yeux-là ("Com aqueles olhos", em tradução portuguesa)... Mas era uma beleza melancólica, a sua, e reforçada pelo perfil típico das suas personagens: “A tristeza é o meu elemento”, reconheceu Morgan a certa altura.

Michèle Morgan rodou cerca de 70 filmes, alguns dos quais, como Remorques (1939), de novo com Gabin, e Les Grandes Manoeuvres (1955), com Gérard Philippe, tornaram-se clássicos.

Cheia de humor, sorria quando lhe chamavam "frigorífico ambulante" ou "grande burguesa". "Nunca tive oportunidade de interpretar mulheres sexy. Parece que o meu charme não estava no meu traseiro", comentava.

"Dessa imagem veio a minha dificuldade em aceitar guiões sobre actrizes loucas que se afundam no álcool ou na histeria por terem deixado de ter idade para ficarem com os papéis principais destinados a mulheres jovens: nunca se deve desfazer a imagem que as pessoas têm de nós", acrescentava, sublinhando não ter rodado se não obras-primas.

Apaixonada pelo cinema desde miúda, estreia-se em 1937 em Gribouille, de Marc Allégret, escolhendo então um nome profissional que "se pudesse pronunciar em todas as línguas" – nasceu Simone Roussel. Depois veio o filme de Marcel Carné, e logo a seguir , em 1939, voltou a contracenar com Gabin no genial Remorques, de Jean Grémillon, filme que só se estreou já em plena Segunda Guerra Mundial, com a França ocupada pelos nazis. Nessa altura, Morgan já tinha partido para os Estados Unidos

Em Hollywood, onde viria a prosseguir a sua carreira, falha por pouco um papel em Casablanca, mas nesse mesmo ano de 1942 casa com o actor americano Bill Marshall, do qual teve um filho, Mike, que morreu em 2005. 

Nos Estados Unidos, roda quatro filmes – incluindo Passage to Marseille, com Humphrey Bogart – que não acrescentam grande coisa à sua glória. 

Após o sucesso de A Sinfonia Pastoral, reina sobre o cinema francês, privado então de inventividade e de audácia. Filma com os jovens estreantes dessa época: Jean Marais, Gérard Philippe e Henri Vidal, que desposa em segundas núpcias. Vai a Itália filmar com Alessandro Blasetti (Fabiola, em 1949), e reencontra dois grandes cineastas franceses em meados dos anos 50, René Clair (em Les Grandes Manoeuvres) e Sacha Guitry (em Napoléon, onde foi Joséphine de Beauharnais)

A sua carreira conhece um eclipse quando rebenta a Nouvelle Vague. Aparece, apesar de tudo, em Landru (1963), de Claude Chabrol, e Le Chat et la Souris (1975), de Claude Lelouch.

Após a morte, por overdose, de Henri Vidal, torna-se a companheira do encenador Gérard Oury, que morrerá em 2006. Sobe pela primeira vez a um palco de teatro em 1978. Em 1993, reencontra Jean Marais numa peça de Jean Cocteau, Les Monstres Sacrés. Entretanto, também participa em numerosos telefilmes. O seu último trabalho no cinema foi uma pequena participação em Estão Todos Bem, de Giuseppe Tornatore, em 1990, derradeiro momento de uma carreira de perto de 70 filmes.

Michèle Morgan consagrou a última étapa da sua vida à pintura: "Nela encontro calma. No fundo, sempre gostei de estar sozinha. E nunca fui tão feliz como com a minha pintura." 

Notícia actualizada às 17h21 de 21/12 acrescentando alguma filmografia

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