A vinha a escrever na paisagem

Susana Neves escreveu (e fotografou) um livro sobre o vinho de Lagoa, no Algarve, diferente de todos os outros. Dos tempos áureos dos árabes ao boom turístico dos anos 70 que “fez a vinha perder o chão”, descreve as artes com que a vinha nos seduz desde sempre.

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Na imagem principal, casta Crato Branco ou Tamarez numa autotipia por Angerer&Goschi, no livro Le Portugal Vinicole 1900 FOTO: Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian

Há, logo a abrir De Vento em Pipa, uma fotografia de uma gavinha, uma fina haste da vinha, que se enrola a um pequeno poste num abraço de várias voltas. É, ao mesmo tempo, uma imagem de fragilidade e de força – e, se nos detivermos nela um pouco, começamos logo aí a perceber que o olhar de Susana Neves, autora do texto e das fotos, nos vai levar por caminhos diferentes dos que habitualmente se encontram num livro sobre vinho.

Este De Vento em Pipa – Quando a Vinha e o Homem inventaram Lagoa, editado pela Câmara Municipal de Lagoa, é um trabalho sobre a vinha e o vinho de Lagoa, Algarve, publicado no ano em que esta é Cidade do Vinho 2016. Susana conta que, como autora, teve total liberdade. E uma das coisas que se sente é que é um livro feito com tempo, tempo para pesquisar, para ouvir as pessoas, e, acima de tudo, para olhar a vinha.

“Acompanhei, em termos fotográficos, o ciclo da vinha, telefonava para saber em que estádio estava, queria muito apanhar o momento da floração”, recorda. “Não queria os clichés de um livro sobre vinho e vinha, não queria pipas, nem aquela imagem comum da vinha, não queria garrafas. Queria um livro em que a vinha mostrasse o seu carácter e como seduziu o homem, garantindo a sua própria sobrevivência.”

Só assim, com atenção e tempo, se conseguem fotografias como as que procurava. Outra imagem mostra a gavinha encaracolada, em várias voltas, sobre ela própria numa espécie de dança suspensa. “Quis mostrar este lado de escrita que ela tem, um lado caligráfico, decorativo, ornamental, que me fez lembrar a caligrafia árabe.”

Para a autora, foi também um processo de descoberta da relação de Lagoa com o vinho. “Quando se chega vê-se a Adega Cooperativa, um edifício Estado Novo que marca a paisagem. Há uns anos cheirava a mosto de tanto vinho que se produzia naquela zona e que a adega guardava.”

Mas era apenas um edifício. Faltava perceber de que forma a população se relacionava com o vinho. “Fui-me apercebendo que toda a gente tinha, de alguma maneira, uma relação com o vinho e a vinha”. São vozes que surgem no final do livro, a partir de conversas com “trabalhadores agrícolas, funcionários da Adega, comerciantes de vinho, enólogos, proprietários, produtores particulares, pescadores, antigos combatentes do Ultramar, funcionários do Município”.

Contam-se aí histórias dos tempos em que se trabalhava “de sol a sol” e em que se ia à praça de Lagoa, manhã cedo, para pedir trabalho ao feitor. Era terra em que “havia algumas famílias ricas que davam trabalho aos pobres” e havia “os remediados, que viviam do seu trabalho”, conta Aparício da Silva Henriques, um dos entrevistados. Plantava-se vinha porque “nos terrenos de areia mais nada se dava”. Mas, muitos anos antes, foram esses terrenos arenosos que salvaram a vinha de Lagoa quando todo o país sucumbia à filoxera.

“Apesar de parecer que a história do vinho em Portugal se escreve exclusivamente a partir do Norte, uma das portas de entrada do vinho e da vinha no país é o Algarve”, sublinha Susana. “Isso é um lado muito negligenciado.” Quando a filoxera destruiu grande parte das vinhas, as do Algarve, e sobretudo as de Lagoa, resistiram. Isso fez com que “a certa altura Lagoa fornecesse vinho ao Douro”, numa relação que não acabou pacificamente: Susana descobriu referências à destruição de uma série de pipas que levavam o vinho do Sul para o Norte. É que este “já não era necessário e começava a prejudicar” os produtores de vinho do Norte.

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Neste livro, Susana Neves escreveu e fotografou, acompanhando todo o ciclo da vinha FOTO: João Silveira Ramos

Para conhecer episódios como este, Susana não se limitou a falar com as pessoas e mergulhou nos arquivos. “Ao princípio tive um susto porque quanto mais recuava no tempo mais difícil era encontrar registos precisos sobre Lagoa.” Diz que foi “como um detective” em busca de caminhos alternativos, tendo percebido que “Lagoa estava dependente de Silves, que tinha feito parte do Al Andaluz” e que desde sempre “o vinho estava lá”.

“O vinho entra antes dos árabes, antes dos romanos”, conta. “Já existia antes dos fenícios, que trazem um vinho especial, com substâncias alucinogénias.” No livro, Susana inclui, por exemplo, uma receita de Vinho Condimentado Maravilhoso e outra de “uvas passas confeccionadas a partir de um preparado feito à base de cinza” de cipreste ou fava – utilizações para as uvas e o vinho que se perderam nos tempos.

Há também uma relação do vinho com a água, que nem sempre era potável. “Bebiam-se misturados, como se fossem ao mesmo tempo rivais e parceiros, fomentando o uso um do outro.” E, escreve no livro, “saber beber vinho implicava, na Antiguidade Clássica, cortá-lo com água e não ultrapassar a quantidade certa” que, de acordo com o poeta cómico grego Eubulo, não deveria exceder as três taças, sendo a primeira para “brindar à saúde”, a segunda “para o amor e para o prazer” e a terceira “para dormir”.

Mesmo com os árabes, e apesar das restrições corânicas, “havia um consumo de álcool e uma celebração do vinho através da poesia”. Por isso, “durante a invasão islâmica o vinho era produzido em larga escala”. Com a Reconquista dá-se um retrocesso e muita gente abandona a agricultura, sendo “o progressivo desmembramento da cultura islâmica” acompanhado pela “perda de preciosos conhecimentos sobre o modo de plantar e cultivar a vinha, fazer vinho e preservá-lo”.

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FOTO: Susana Neves
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Mas o verdadeiro momento do afastamento da vinha acontece muitos séculos depois, já nos anos 70 do século XX, quando “com o boom turístico a construção civil vai buscar os terrenos arenosos, junto ao mar, às vinhas e a vinha perde o chão”. Literalmente.

Hoje há em Lagoa um esforço para retomar essa ligação histórica com o vinho. No entanto, Susana Neves encontrou duas estratégias diferentes. Uma é a da Comissão Vitivinícola, apostada em diferenciar o vinho da região pelas castas autóctones, em particular a Negra Mole. “O que está a acontecer”, explica, “é um momento de viragem na história da Negra Mole, que está a ser trabalhada e apurada.”

A Negra Mole é, por enquanto, uma casta que se distingue à vista desarmada. “Há qualquer coisa na fisionomia do cacho que a diferencia. É como se fosse uma miúda do campo, com bagos amarelados, outros tintos. Tem um ar meio silvestre, enquanto as outras têm um lado mais arrumado.” Mas parece que essa “miúda do campo” não convenceu ainda o maior produtor de Lagoa, o alemão Karl-Heinz Stock, proprietário da Quinta dos Vales, que “quer ter um leque muito mais vasto de castas, que exclui a Negra Mole”.

Susana prefere não entrar por aspectos muito técnicos da produção do vinho. O que a fascina é a história da vinha e da relação dos homens com ela. Foi esse fascínio que a levou à pesquisa da mitologia ligada ao vinho, aos arquivos nos quais desencantou histórias como o relato do jornal O Século sobre a visita do rei D. Carlos e da rainha D. Amélia a Lagoa em 1897 e o que aí comeram (e beberam) ou o fabuloso livro que Portugal apresentou na Exposição Universal de Paris de 1900 (no qual o Algarve aparece como 12ª região vinícola do país).

O mesmo fascínio que a levou a passar dias entre a vinha, acompanhando todas as pequenas mudanças. “Há uma fase em que se diz que a vinha está em pintor. Quando os bagos estão a ganhar açúcar, a alcoolizar-se, começam a tingir-se de muitas cores. É uma fase de experimentação pictórica do cacho, em que há uma conjugação de cores completamente inesperada.” Percebeu também como a vinha “tem uma capacidade extraordinária de assimilar sabores e cheiros”. E conseguiu fotografar a frágil e muito efémera flor que anuncia a chegada dos primeiros bagos.

Foi num desses dias passados na vinha que, subitamente, uma gavinha se agarrou ao cabelo. “O momento em que a vinha começa a lançar essas gavinhas, a suspender-se, é extraordinário porque se vê o movimento das plantas”, conta. “A certa altura, fiquei com o cabelo preso na vinha. Ela agarrou-me. Literalmente. É uma planta trepadeira e tem essa garra, veio para ficar. Não conseguimos resisti-lhe. Agarrou-nos até hoje.”

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