Alepo: por quem dobram os sinos

A queda da cidade assinala o colapso da influência dos EUA e da Europa.

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O cerco de Alepo começou em Julho de 2012. Resta uma cidade morta. Parte do centro histórico está reduzida a pó e destroços. É ocioso contar os mortos e as vagas de fugitivos. E, quando uma cidade morre, com ela morre uma parte da civilização, de uma civilização milenar. Um poema de John Donne, For whom the bell tolls, escrito há quase meio milénio, explica a proximidade da tragédia de Alepo. 
“Nenhum homem é uma ilha,/ isolado em si mesmo;/ todo homem é um pedaço do continente,/ uma parte da terra firme./ Se um torrão de terra for levado pelo mar,/ a Europa fica diminuída,/ como se fosse um promontório,/ como se fosse o solar dos teus amigos/ ou o teu próprio;/ a morte de qualquer homem me diminui,/ porque sou parte do género humano,/ e por isso não me perguntes/ por quem os sinos dobram;/ eles dobram por ti.”

A Síria não é Europa, mas está aqui ao lado, no Mediterrâneo. Os refugiados encarregam-se de o lembrar. Resume o Financial Times em editorial: “A queda de Alepo assinala o colapso da influência dos EUA e da Europa.” 

Não foi o Ocidente que provocou a guerra. Foi incapaz de a parar, cometeu erros de análise e assistiu impotente ao massacre de Alepo, reduzido ao protesto moral. Se não nos enganamos, faltam ainda muitos cercos e chacinas neste interregno entre o fim do mandato de Obama e a posse de Donald Trump, em que as forças pró-Assad querem concluir a presente campanha. A queda da maior cidade síria não significa o fim da guerra, mas designa dois vencedores: a Rússia e o Irão. Assad permanece no poder, mas é um mero vencedor colateral. A queda de Alepo significa também o total fracasso das potências árabes sunitas, a começar pela Arábia Saudita. Em compensação, o Daesch aproveitou a batalha final de Alepo para reconquistar Palmira. 

Primeiros efeitos
Na Síria, a guerra continuará, podendo entretanto mudar as posições dos actores. A aliança pró-Assad (russos, iranianos, Hezbollah) tem um provável segundo e estratégico objectivo: o enclave de Idlib (entre Alepo e a costa). Há várias cidades nas mãos dos rebeldes. E quem desencadeará a ofensiva contra Raqqa, quartel-general do Daesh? Metade dos candidatos são rivais entre si. Que papel terão americanos e curdos? E a Turquia, que dá prioridade aos curdos sírios e à fragmentação dos seus territórios? O Daesh não é prioritário para russos e iranianos, cujo objectivo é consolidar Assad. Mas não gostariam de ver Raqqa tomada por uma força apoiada por americanos ou pela Turquia. Com os países sunitas fora de jogo e os turcos sem política coerente, tudo é imprevisível. 

Para lá das batalhas que faltam, os vários grupos rebeldes tenderão a abandonar as grandes cidades e prosseguir uma guerra de guerrilha e desgaste, uma frente em que a aviação russa seria inútil e que requereria efectivos que Assad não tem. 

Uma fonte israelita dá conta da preocupação dos russos, que estariam a negociar em Istambul um modus vivendi futuro com grupos rebeldes: as regiões do interior obteriam uma autonomia total em troca de um pacto de não agressão com Damasco. A unidade do Estado sírio seria formalmente mantida, mas cada grupo rebelde administraria o seu feudo. O regime conservaria a “Síria essencial”: as cidades, o litoral e a coluna dorsal que liga Damasco a Alepo. Terá o “emirado” do Daesh um lugar neste cenário? Todos os cenários são especulativos: não há aqui amigos nem inimigos totais ou definitivos. A própria Rússia e o Irão têm interesses comuns (caso da Síria) e divergentes (opostas perspectivas perante a futura Administração Trump).
Russos e iranianos

O Irão surge como evidente vencedor. A implantação no Norte sírio consolida a sua influência uma vasta área: Iraque, Síria e Líbano (via Hezbollah), o que inquieta Israel. Obteve uma vitória militar e política. Terá tido um papel essencial na entrada em cena de Moscovo. 

Mas a Rússia entrou em cena sobretudo graças ao impasse americano sobre uma eventual intervenção que Obama acabou por recusar. A “linha vermelha” das armas químicas permitiu à Rússia entrar no terreno diplomático. A “prioridade” da luta contra o Daesh — uma astúcia de guerra — abriu caminho aos bombardeamentos, mas não contra o Daesh. 

O analista russo Dmitri Trenin explica que o objectivo de Putin excede o terreno sírio. “A acção da Rússia na Síria não é realmente sobre a Síria, mas sobre o Médio Oriente. É sobre o seu papel global — e eventualmente sobre uma coligação de iguais com os Estados Unidos.” De qualquer forma, a presença russa na Síria e as suas bases aeronavais garantem-lhe um papel duradouro no Mediterrâneo Oriental. 
Perante a passividade forçada dos EUA, a Rússia recorre à força brutal que já usara na Tchetchénia, mas o certo é que conquistou o estatuto de “grande potência” na região. 

O peso do passado
Todos se entusiasmaram com o protesto pacífico dos jovens sírios em 2011, a que Damasco respondeu com brutalidade. Foi exigida a demissão de Assad sem meios para a forçar. São os ocidentais que mais escrevem sobre a Síria, o que de pouco serve aos políticos e aos media. 

É indispensável lembrar algumas coisas. A Síria foi o único Estado árabe solidário com o Irão quando este foi atacado pelo Iraque em 1980. Todos os árabes e muitos ocidentais apoiaram Bagdad. Por ironia da História, Teerão está hoje em posição de força no Iraque. Os laços com o Irão são muito sólidos e, para lá do interesse no Líbano, Teerão jamais deixaria cair Assad. 

Os ocidentais e os Estados sunitas, obcecados com o “crescente xiita”, subestimaram também a capacidade de resistência da ditadura síria. É que não se tratava de uma mera ditadura, era o regime em que uma minoria, os alauitas, detinha o poder, aliando-se a cristãos e drusos e, até 2011-12, à grande burguesia comercial sunita. Para os alauitas, a “mudança de regime” era uma ameaça vital. Nenhuma das partes esqueceu os massacres de alauitas pela Irmandade Muçulmana, nem o morticínio final de sunitas em Hama, pelo Presidente Hafez Assad, em 1982 — entre 10 e 20 mil mortos. 

Todos preveniam que a Síria se partiria segundo linhas étnico-religiosas e que uma guerra civil não seria simplesmente síria: envolveria os vizinhos, como os sauditas e ou o Qatar, que depressa  financiaram os seus jihadistas. Optimista, o emir do Qatar prometeu ir a Damasco comemorar o fim do Ramadão de 2012. 
Voltando ao futuro. Uma das coisas interessantes a observar nos próximos meses será a evolução das novas relações russo-americanas: é que Trump prometeu negociar com Moscovo numa “posição de força”. A Síria seria o melhor teste.

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