Entre Trump e Fidel, o coração de Louçã balança

A extrema-esquerda precisa de companhia no outro lado do espectro ideológico, nem que para isso tenha de chamar fanáticos de direita a pacatos liberais

Eu tenho um problema com a articulação dos érres entre vogais. Quando digo “pereira” sai-me “pegueiga”. As pessoas gozam comigo por causa disso. Francisco Louçã tem um problema com a articulação da palavra “ditador” junto ao substantivo próprio “Fidel”. Quando diz “Fidel” sai-lhe “vencedor”. É uma afasia política muito engraçada. Se ainda hoje Bernardino Soares é gozado por ter dito que a Coreia do Norte era uma democracia, Francisco Louçã merece ser gozado por não ser capaz de dizer que Cuba é uma ditadura.

Um tipo injusto diria que a morte de Fidel Castro foi a rabanada de vento que fez voar o capachinho democrático de Francisco Louçã, revelando a sua careca trotskista. Mas eu não sou um tipo injusto. Em bom rigor, ao longo da nossa mini-polémica Louçã nunca disse que Fidel era um ditador, mas também nunca disse que não era. Simplesmente, evitou dizer. Quando um leitor, nos comentários do blogue Tudo Menos Economia, o convidou a clarificar a sua posição – sim ou não –, ele respondeu: “Não facilitarei revisionismos históricos que ofendem a memória dos antifascistas.” É uma resposta extraordinária. A ideia que fica é esta: em casa, Louçã sente-se livre para criticar Fidel e a boina de Che Guevara; em público, considera ser seu dever vestir a farda Coronel Tapioca e defender a mitologia da revolução cubana. Do alto da minha generosidade, não considero, pois, que Louçã tenha um genuíno fascínio por ditadores. Tem apenas um fascínio pela manipulação das palavras e pela retórica revolucionária, não tendo qualquer problema em levantar o braço direito da pessoa que tem à sua frente só para lhe poder chamar fascista.

É esse, diga-se, o ponto que me fez voltar ao tema. Convido toda a gente as ler as respostas que Louçã deu aos leitores do texto A selfie de Marcelo e o ódio sonso de Tavares. Muitos criticaram-no pela sua posição ambígua em relação a Cuba, e a todos eles respondeu com a invocação de Donald Trump e das suas posições primárias. Qualquer leitor que tenha considerado Fidel um ditador foi despachado por Louçã com formulações como: “Também li o comunicado de Trump; ainda bem que há em Portugal quem o repita, assim percebe-se para onde vai a direita.” Ou: “Esta discussão é só sobre o trumpismo: sobre as classificações simplistas, sobre as discussões falsificadoras.” À hora a que escrevo, Louçã já tinha repetido 14 vezes as palavras “Trump” ou “trumpismo” a propósito da morte de Fidel, sem que Trump alguma vez tivesse sido invocado por quem quer que fosse. É esta manipulação de que falo: o que era uma conversa sobre Fidel passa a ser uma conversa sobre Trump. Trump. Trump. Trump. Sabendo nós que Louçã continua a ser o flautista de Hamelin do Bloco de Esquerda, convém prepararmo-nos para o que aí vem: o reductio ad Trumpum. Durante os próximos quatro anos, qualquer alma de direita que concorde com Donald Trump acerca do estado do tempo em Nova Iorque passa a ser trumpista, que não é mais do que a antecâmara do velho fascista.

A extrema-esquerda precisa de companhia no outro lado do espectro ideológico, nem que para isso tenha de chamar fanáticos de direita a pacatos liberais. Ao longo dos últimos anos não tenho assistido a outra coisa. Louçã é o que sempre foi, e ninguém espera que ele mude. Mas convém denunciar o truque, e repetir as vezes que forem precisas que não, nós não somos todos iguais. Nem todos sofremos de afasia política. E nem todos confundimos ditadores com vencedores.

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