Com o colapso do cessar-fogo, prossegue a aniquilação do Leste de Alepo

As colunas que se preparavam para iniciar o transporte da população cercada pelo regime nem chegaram a arrancar: logo pela manhã, as bombas voltaram a cair sobre os bairros leste. Rússia e Turquia tentam recuperar a trégua, enquanto o Irão impõe novas condições aos rebeldes.

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As bombas voltaram a cair no Leste de Alepo ao princípio da manhã AFP/STRINGER

Não durou sequer 24 horas o cessar-fogo negociado pela Rússia e a Turquia para permitir a evacuação dos bairros do Leste de Alepo onde estavam acantonadas milhares de pessoas (50 mil, 100 mil?) desesperadas por escapar aos intensos bombardeamentos aéreos e ao fogo de artilharia que precipitaram a rendição das forças opositoras do Presidente Bashar al-Assad na cidade – um gesto que, na prática, consagrou a reconquista de Alepo pelo regime depois de quatro anos de guerra.

Logo pela manhã, o fogo regressou à cidade. Depois de anunciado o fim da batalha de Alepo, voltava a instalar-se a dúvida: afinal acabou ou não? Como tem acontecido desde que rebentou a guerra na Síria, existem versões contraditórias sobre quem disparou primeiro: as forças governamentais e o ministério de Defesa da Rússia disseram que foram forçadas a responder a “ataques insurrectos” que alegadamente provocaram a morte de seis pessoas; os combatentes rebeldes e activistas anti-Assad, assim como as autoridades turcas, acusaram o Exército sírio e as milícias xiitas que o apoiam de ter violado a trégua.

O que é certo é que os caças voltaram a sobrevoar Alepo ao princípio da manhã, e com as bombas a cair de novo sobre os bairros rebeldes, a operação de evacuação foi suspensa. O plano de cessar-fogo tinha como principal objectivo permitir a saída de milhares de sobreviventes da cidade devastada. Nos últimos dias da ofensiva, os relatos vindos do Leste de Alepo eram medonhos, de uma brutalidade inimaginável: as Nações Unidas denunciaram o massacre de centenas de pessoas, muitas das quais sumariamente executadas pelos soldados sírios à porta de casa.

As colunas preparadas para o “resgate” da população ficaram paradas, e os mais de 20 autocarros que estavam a postos para o transporte acabaram por regressar à garagem. Igualmente, as ambulâncias que já estavam a caminho da cidade voltaram para trás por causa dos bombardeamentos. Num novo apelo desesperado, os Médicos Sem Fronteiras alertaram para a situação “crítica” em Alepo, onde a população cercada já não tem água, electricidade, alimentos e abrigo. “As condições são extremas, as pessoas estão a dormir na rua, em carros e mesquitas. Está frio e ninguém se consegue aquecer”, lia-se na conta do Twitter da organização.

“O acordo estava fechado e os autocarros estavam prontos a avançar. O colapso do cessar-fogo é escandalosamente cruel e indesculpável”, reagiu o alto-comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Zeid Ra’ad Al Hussein. Em declarações aos meios russos, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, estimou que bastariam “dois ou três dias para vencer a resistência dos rebeldes” – e “resolver” a questão de Alepo.

Ao início da noite, a Rússia e a Turquia (que representam, respectivamente, o regime e a oposição nas negociações) prometiam fazer um “esforço acrescido” para promover a evacuação do Leste de Alepo “o mais cedo possível”. Os dois presidentes, Vladimir Putin e RecepErdogan, conversaram ao telefone e concordaram que a trégua tinha de ser retomada. Segundo o relato de Ancara, os dois líderes discutiram a possibilidade de desenhar corredores seguros para a assistência humanitária – mas nenhuma informação concreta foi fornecida a esse respeito.

Entretanto, os termos em que assentou o primeiro acordo de cessar-fogo foram alterados. O Irão, aliado imprescindível de Damasco no conflito (além da Rússia), apresentou novas exigências aos grupos que combatem o Presidente Bashar al-Assad, impondo a evacuação “recíproca” das localidades que estão debaixo de cerco dos rebeldes, especialmente na província vizinha de Idlib, um dos últimos redutos da oposição. De acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, Teerão referia-se em concreto às aldeias xiitas de Foua e Kefraya, que foram atingidas por morteiros assim que foram conhecidas as novas condições iranianas.

Aterrados e esgotados, os últimos residentes da parte Leste de Alepo (concentrados em pouco mais dois quilómetros quadrados) recorrem às redes sociais para pedir socorro. “Por favor, ajudem-nos a sair daqui”, suplicava a professora primária Umm Mudar. Após horas de bombardeamentos, os apelos tornaram-se despedidas. Bana Alabed, uma menina de sete anos que publica mensagens através do Twitter da mãe, escrevia: “Ao vivo para o mundo do Leste de Alepo. Esta é a minha última mensagem. As pessoas estão a morrer desde a noite passada. O meu pai está ferido e eu estou a chorar. Não sei se vou viver ou morrer”.

O mundo assiste, emocionado mas impotente, à aniquilação do Leste de Alepo. Marchas e manifestações de solidariedade sucedem-se (em Paris, por exemplo, a torre Eiffel apagou as luzes para homenagear as vítimas inocentes da ofensiva), mas os líderes da comunidade internacional continuam paralisados: numa reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU na terça-feira, trocaram-se acusações mas não apareceram respostas para a crise.

Agora que Bashar al-Assad pode reclamar a mais importante vitória desde que o seu regime começou a ser posto em causa, na já longínqua Primavera de 2011, a questão é saber o que o Presidente tenciona fazer a seguir: prosseguir contra a oposição ou voltar a atenção para os jihadistas que recuperaram Palmira? Segundo o especialista em diplomacia da BBC, Jonathan Marcus, qualquer que seja a sua decisão, o fim da batalha de Alepo deverá precipitar uma “luta ainda mais caótica e sangrenta” na Síria.

Numa entrevista à estação televisiva Russia24, o Presidente sírio garantiu que só porá fim às acções militares quando houver uma rendição total dos “terroristas”. “Não haverá nenhum cessar-fogo”, frisou. Quando perguntado sobre qual poderá ser a solução para o conflito na Síria, Assad respondeu que “depende da vontade do Presidente eleito dos Estados Unidos”. “Durante a campanha eleitoral, as declarações de Trump sobre a luta contra o terrorismo e a ingerência de outros países para derrubar governos pareceram-me muito bem. Agora, tudo depende da sua vontade de continuar nessa direcção”, afirmou.

 

 

 

 

 

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