Centro de Língua Portuguesa abre 130 anos depois de Casamansa ter passado para França

Vai ser o segundo centro do género no Senegal, o país não lusófono onde há mais estudantes de português no mundo.

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A região de Casamansa foi cedida por Portugal em 1886 em troca de Cacine, no sul da actual Guiné-Bissau REUTERS/Finbarr O'Reilly

Portugal vai abrir até Março de 2017 um Centro de Língua Portuguesa (CLP) do Camões - Instituto da Cooperação e da Língua em Casamansa, 130 anos depois de ter cedido aos franceses aquela região da então Guiné portuguesa.

Vai ser o segundo centro do género no Senegal, “o país não lusófono onde há mais estudantes de português” no mundo, disse à Lusa, José Horta, director do CLP de Dacar, que funciona na Universidade Cheikh Anta Diop (UCAD). Eram 43.500 alunos no último ano lectivo, um crescimento em relação aos 38.500 de 2013. “Todos os anos há um aumento de alunos. Professores são 430, senegaleses, pagos pelo Senegal”, sublinhou.

Na UCAD há outros dois mil alunos no curso de Estudos Portugueses e “mais de metade é oriundo de Casamansa”, acrescentou Horta. Portugal entregou a região em 1886 por troca com Cacine, no sul da actual Guiné-Bissau, no âmbito da Conferência de Berlim, em que os estados europeus redefiniram entre si as fronteiras das colónias africanas. O mapa mudou, mas a presença portuguesa que durou dois séculos e meio mantém-se viva e manifesta-se através de algum património cultural, usos e costumes, e no interesse pela língua.

A obra do CLP avança, com algumas paredes em bruto já erguidas, no meio de um espaço verde da Universidade Assane Seck, em Ziguinchor, entreposto comercial criado a mando de D. João IV (1645) e cidade que começou a ser moldada pelos luso-africanos que nasceram do contacto entre portugueses e povos locais. “O centro é uma ambição minha desde que cheguei ao Senegal há 16 anos”, referiu José Horta, em entrevista à Lusa durante uma visita à Universidade Assane Seck, com inauguração prevista para entre Fevereiro e Março do próximo ano.

Já há muito que tinha ouvido falar de Casamansa e, quando finalmente conheceu a região, ficou rendido à ideia de que “depois da capital” era ali que tinha que haver um centro de língua portuguesa. Assim nasceu um protocolo com a universidade pública de Ziguinchor, onde já há cerca de 300 estudantes de português. Além destes, “o centro vai servir toda a gente que seja amiga da lusofonia”, com aulas de português para estrangeiros, ciclos de cinema ao ar livre e outras actividades - tudo a troco de uma inscrição a preço simbólico.

O português é uma das seis línguas de opção no percurso escolar público do Senegal. “Os alunos têm sempre que escolher uma delas a certa altura” e “os laços afectivos com a Guiné-Bissau, Cabo Verde e que resultam da história” pesam a favor de Portugal, apontou José Horta.

Das voltas pelo país, no trabalho com os professores, José Horta concluiu que “os senegaleses, sobretudo os do sul, ainda hoje se sentem um pouco portugueses” e recordou que Léopold Senghor, primeiro Presidente do Senegal após a independência, em 1960, dizia ter “uma gota de sangue português” - o sobrenome Senghor que recebeu do pai terá sido uma derivação da palavra “senhor”. O chefe de Estado foi agraciado com o Grande Colar da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada de Portugal a 13 de Março de 1975.

“É preciso agarrarmos estas oportunidades e fazermos, por exemplo, uma formação de professores bastante sustentada para os incentivar a criarem clubes de português que são um motor dentro das escolas”, realçou. São estes clubes que organizam festas, encontros culturais, de danças e outros que motivam o interesse pela língua.

O dia da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) que José Horta e os alunos organizam todos os anos na faculdade, em Dacar, é um desses eventos que acredita serem capazes de captar novos estudantes de português. “Quando os alunos têm um bom professor, que os motiva, eles querem aprender aquela língua. Até podem abandonar outra para aprender aquela. O meu trabalho é fazer com que os professores aprendam a motivar os alunos”, sublinhou.

Crioulo português

Os apelidos de habitantes de Ziguinchor testemunham a presença da cultura portuguesa no coração de Casamança. Eles são Carvalho, Mendes ou Gomes, entre outros, alguns transformados “em Mendy ou Gomis”, explicou Eugène Tavares, director da Unidade de Artes e Letras da Universidade Assane Seck.

“Os portugueses deixaram aqui um património que devemos valorizar”, uma vez que continua a ser “desconhecido pela população de Ziguinchor e do Senegal”, disse Eugène Tavares. A herança lusófona é uma das suas paixões e levou-o a presidir à organização de um colóquio de três dias, que terminou na sexta-feira, sobre a presença lusófona em Casamansa.

O Senegal “é o único país francófono que tem um crioulo de base lexical portuguesa”, porque embora Casamansa tenha sido entregue aos franceses, os luso-africanos cujos laços se estendiam a Cacheu, Bissau e Bolama mantiveram-no vivo, até hoje.

Da mesma forma há edifícios com arquitetura portuguesa, gastronomia (como os caldos, semelhantes aos da Guiné-Bissau), trajes, usos e costumes que descendem da tradição portuguesa e que se mantiveram como sinais identitários apesar das mudanças políticas. “Parece-me que o nosso país não tem consciência desta grande riqueza”, lamentou Eugène Tavares, que encara o colóquio como “um primeiro passo”. “Queremos continuar este trabalho de pesquisa”, porque “a partir do momento em que vamos identificar este património, é uma parte da nossa memória que vamos descobrir”.

Para Leopoldo Amado, director-geral do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP) da Guiné-Bissau e um dos oradores convidados, África é feita de diferentes linhas históricas que se cruzam e a colonização portuguesa é uma dessas linhas - por mais desagradável que seja recordar o comércio de escravos, por exemplo.

“Houve gente que herdou a cultura, descendentes de colonos portugueses que adoptaram a língua portuguesa no processo de escolarização, que se diferenciaram da restante população africana e passaram a ter uma posição de predomínio ao nível político, mas também ao nível comercial. Isto produziu-se ao longo de vários séculos”, destacou à Lusa, ao explicar como foi possível preservar a herança cultural até hoje.

Natália Pires, docente na Escola Superior de Educação de Coimbra, foi a única convidada que viajou expressamente de Portugal para participar no colóquio organizado pela Universidade de Ziguinchor e encara o legado como “parte da história” de Portugal e da identidade lusófona.

“Nós somos um povo cuja identidade foi construída a propósito daquilo que conheceu fora das fronteiras portuguesas. Nós somos também fruto do contacto que mantivemos com os outros povos”, sublinhou.

Eugène Tavares espera organizar novas edições do colóquio que este ano foi sobretudo “uma reunião científica”, que juntou especialistas em diferentes disciplinas, da História à Sociologia, passando pela Literatura.

Faltam dados que mostrem de quantos luso-africanos ainda é feita a Casamansa - por entre outros povos locais, como os Diola ou Bainounck. Em certa medida, há a noção de que se trata de uma corrida contra o tempo, porque “a nova geração não conhece esta parte da história da região e do Senegal”, mas ter o anfiteatro cheio durante três dias de debate talvez seja um bom augúrio.

 

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