Ministério Público teme pressões sobre testemunhas no processo dos Comandos

Testemunhas-chave e ofendidos continuam sob a hierarquia militar de arguidos ainda em funções no Regimento de Comandos

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Exército diz "que não comenta rumores" e que "colabora com as entidades competentes" da investigação DR

Quatro dos cinco oficiais e dois sargentos indiciados pelo Ministério Público no âmbito da investigação às mortes do segundo-furriel Hugo Abreu e do soldado Dylan da Silva, no primeiro dia da instrução no Curso 127 dos Comandos, a 4 de Setembro, continuam a exercer as suas funções no Regimento dos Comandos na Carregueira.

Os instruendos que concluíram o curso a 25 de Novembro permanecem, assim, agora já com o estatuto de comandos, sob a hierarquia dos arguidos.

Apenas um, o médico do curso, ficou impedido, a 18 de Novembro, pela juíza de instrução de continuar a exercer funções no Regimento de Comandos e Unidades de Saúde Militares. Os restantes seis militares eram ou instrutores dos dois grupos onde estavam inseridos Hugo Abreu e Dylan da Silva, ou responsáveis da instrução.

De acordo com informação que tem chegado aos investigadores do Ministério Público, os ex-instruendos têm sido alvo de pressões “do Éxercito e de outros comandos”. “Estão a sentir-se culpados de estar a falar”, diz uma fonte próxima do inquérito-crime.

Questionado sobre estas denúncias, o gabinete de Relações Públicas do Exército respondeu “que o Exército não comenta rumores” e que “colabora com as entidades competentes”. A estas, acrescenta, “é que cabe a investigação”.

Dos 67 que começaram o Curso 127 dos Comandos, em Setembro deste ano, apenas 23 o concluíram. O que disseram no inquérito serve de prova nesta fase, mas não em tribunal, num eventual julgamento, se não confirmarem o que declararam aos investigadores do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) e à Polícia Judiciária Militar (PJM). Querem continuar a ser militares, lembra a mesma fonte, e quando forem chamados a depor em tribunal é previsível que, na presença dos seus chefes, optem pelo silêncio ou por desmentir a versão transmitida na fase de inquérito que ainda não terminou.

Também no grupo dos que não chegaram a concluir o curso (ou porque desistiram, ou porque foram afastados por razões de saúde) haverá quem esteja a ser pressionado a não falar — alguns pretendem voltar ao curso de comandos, quando um novo for aberto (para virem a ser chamados para missões de paz internacionais) ou querem ser militares, mesmo sem serem comandos.

Mais arguidos?

Ao mesmo tempo que decorre a investigação criminal, prossegue o processo de averiguações interno, aberto logo no início de Setembro, por iniciativa do comandante do Exército, general Rovisco Duarte, para verificar se foi, de alguma forma, violado o Regulamento de Disciplina Militar durante Curso 127.

No âmbito desse inquérito, tanto os ex-instruendos que acabaram a formação, como os que não chegaram ao fim, têm vindo a ser chamados. Ainda não há uma data definida para a conclusão dessa averiguação.

Familiares de testemunhas têm contactado o Ministério Público manifestando a sua preocupação relativamente às pressões a que estarão a ser sujeitos os ex-instruendos quando chamados a depor no âmbito do inquérito interno do Exército. “Houve coisas que viste mas que não vais revelar” — terá sido dito a um deles.

De resto, o MP acredita que instrutores dos outros dois grupos do mesmo curso, para além dos dois grupos de Hugo Abreu e Dylan da Silva, sejam constituídos arguidos. Também aí houve militares hospitalizados — ou seja, também nesses grupos se terá verificado incumprimento do Guião da Prova Zero — a prova que se realizou a 4 de Setembro.

Este documento “Reservado” — que consta do processo — prevê, por exemplo, que no mínimo sejam dados aos militares cinco litros de água no dia da prova. E que a quantidade seja ajustada às condições do clima, como o calor, sendo admitido um aumento da água distribuída. Não foi isso que aconteceu a 4 de Setembro.

Se, por um lado, o Guião da Prova estabelece que “os momentos de consumo de água são à hora das refeições e quando o instrutor julgue necessário, no decorrer da instrução, sendo o acesso à mesma realizado sempre sob controlo superior”, também acautela situações excepcionais, ao definir o consumo de água como “uma das preocupações fundamentais do director da prova”, sendo “o mínimo diário obrigatório de cinco cantis”. O “director da prova” poderá “decidir aumentar a dotação diária, bem como implementar outras medidas adicionais de hidratação” de acordo com as circunstâncias, o calor ou a humidade, os níveis de esforço desenvolvidos ou o parecer do médico ou das equipas de instrução.

1300 páginas de processo

Os relatórios das autópsias que constam do processo de mais de 1300 páginas, confirmam que o segundo-furriel e o soldado morreram (a 4 e 10 de Setembro) da desidratação extrema resultante de um golpe de calor.

Além desses relatórios, a prova recolhida pelo DIAP e PJM é principalmente testemunhal. Testemunhas, instruendos e ofendidos foram ouvidos, em separado, ao longo de pelo menos cinco horas. Todos eles — menos um — “contaram mais ou menos a mesma coisa”, refere fonte ligada à investigação judicial.

Do extenso relato, pode ler-se, entre muitos outros episódios, que na enfermaria chegaram a estar 23 instruendos a soro. Logo de manhã do dia 4 de Setembro pelo menos seis sentiram-se muito mal e desmaiaram.

Pelo menos dois foram castigados e não puderam beber água e alguns apenas beberam, no máximo, durante toda a manhã, 32cl de água. Outros quatro instruendos foram privados do almoço. Também por castigo.

Os instruendos do grupo de graduados (a que pertencia Hugo Abreu, 20 anos) não dormiram e ao pequeno-almoço foram privados de água. Também comeram menos do que o previsto. Havia mais três grupos de praças. Os elementos de um desses grupos (a que pertencia Dylan da Silva, também com 20 anos) dormiram duas horas. A prova implicou elevado esforço físico sob um calor extremo, mas os pedidos de água foram recusados.

O desmaio do primeiro instruendo foi presenciado pelos instrutores. A instrução prosseguiu. Alguns começaram a sentir-se mal com vómitos e tremores, ficaram fardadso no interior do Posto de Socorros, onde a temperatura era elevada, deitados e a soro até ao dia seguinte.

Depois das 14h00, e com uma temperatura acima de 40 graus Celsius, os instruendos de pelo menos um grupo — o de Dylan da Silva — foram impedidos de beber água, já depois de alguns não conseguirem andar. Foram obrigados a rastejar e a rebolar. Pelo menos quatro desmaiaram. Entre esses estava Hugo Abreu. Um após outro mostravam-se muito confusos. Não respondiam. Não se mantinham de pé. Alguns foram retirados para o Posto de Socorros. A outros foi ordenado, mesmo assim, que rastejassem.

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