Nos 10 anos da morte de Cesariny, “um lugar que é só seu”

Cumpriu-se o desejo do artista surrealista Mário Cesariny, que agora está sepultado num jazigo que tem um desenho e um poema como lápide. O monumento funerário foi inaugurado esta quinta-feira no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa.

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A inauguração do monumento funerário decorreu esta quinta-feira no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa Jornal PÚBLICO
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O poema de Mário Cesariny na lápide do jazinho agora inaugurado Jornal PÚBLICO
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O Presidente da República e o Ministro da Cultura estiveram na homenagem Jornal PÚBLICO

Quando se entra no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, e se percorre a ala central, à esquerda podemos agora contemplar o jazigo de Mário Cesariny (1923-2006) com um poema seu escrito na lápide: “A vida/ às portas da vida/ e o azul masculino de um rio//  Amor ardente/ de forma distinta”. Um jazigo do século XIX, idêntico ao de outro poeta, Jorge de Sena (1919- 1978), que está ali mesmo ao lado. Naquele corredor ao ar livre só há um outro túmulo entre os dois.

Em vez da tradicional cruz, a sepultura de Mário de Cesariny tem uma escultura em bronze, fundida de uma só vez, com um metro e setenta e quatro, exactamente a mesma altura que ele tinha. Foi projectada pelo seu amigo Manuel Rosa, seu editor na Assírio & Alvim juntamente com Hermínio Monteiro (1952-2001), e na parte de trás do túmulo, que é de lioz, a pedra de Lisboa, está gravado um desenho de Mário Cesariny, a Menina-poesia, com um girassol.

O monumento funerário foi inaugurado esta quinta-feira na presença do Presidente da República e do ministro da Cultura. É o final de uma história que começou ainda em vida do poeta e pintor, quando este manifestou o desejo de ser sepultado num jazigo de um cemitério lisboeta. Mas em Novembro de 2006, quando Cesariny morreu, esse jazigo não existia e o seu corpo foi colocado no gavetão 29 do Talhão dos Artistas, onde nem o seu nome estava inscrito. Não sem polémica, a situação foi finalmente resolvida. Depois de uma discreta cerimónia de trasladação, na semana passada, os amigos de Cesariny e várias intituições prestaram-lhe ontem um tributo que intitularam "Falta por aqui uma grande razão: nos 10 anos da morte de Mário Cesariny”.

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O jazigo com o desenho de Mário Cesariny Menina-poesia Jornal PÚBLICO

A família de sangue e as outras famílias que o poeta escolheu, bem como os anónimos que quiseram ali estar, encheram a igreja onde decorreu a homenagem para assinalar os dez anos da sua morte. A presença na cerimónia do Presidente da República tornou “a homenagem de muitos” numa “homenagem de todos”, como referiu um dos oradores e organizadores, José Manuel dos Santos, administrador e director cultural da Fundação EDP e amigo de Cesariny durante décadas.

 “Com a morte pode brincar quem a venceu, como é o caso de Mário Cesariny de Vasconcelos, poeta que ficará enquanto existir língua portuguesa”, disse o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa no momento em que evocou o artista.

 “Que a morte tenha trazido Mário Cesariny para o Cemitério dos Prazeres traz consigo uma justiça poética. É aliás poeticamente justo que um cemitério se chame dos prazeres. Talvez porque todos os prazeres acabam quando aqui se chega. Talvez porque outros prazeres continuem nuns quaisquer Campos Elísios, de que nada ou muito pouco sabemos”, acrescentou Marcelo Rebelo de Sousa deixando toda a gente a rir-se.

O Presidente da República lembrou que Cesariny viveu “uma vida obstinadamente não igual, não conforme, diferenciada, distinta”. Por isso, “embora estivesse até aqui na companhia de outros artistas — com que sempre esteve em vida —, faz sentido que tenha como última morada, aquilo que conquistou também na vida, um lugar que é só seu”, justificou.

Lá fora, ao ar livre, ecoava pelo Cemitério dos Prazeres a voz de Cesariny declamando alguns dos seus mais conhecidos poemas. Aquele que começa com os versos “Em todas as ruas te encontro/em todas as ruas te perco” podia ser lido na fachada da igreja.

Desviando-se de uma gigantesca coroa de flores brancas, de homenagem do Presidente da República, e de outras que esta quinta-feira de manhã foram colocadas no jazigo, Manuel Rosa explicou ao PÚBLICO que os trabalhadores da fundição, quando a peça de bronze lá chegou, chamaram-lhe “a chama” e os trabalhadores do cemitério, quando a viram, chamaram-lhe “um cipreste”.

“E então?”, quisemos saber a conclusão. “Anda por aí, não vale a pena dizer mais nada”, responde o editor e gráfico. A escultura existe para que se tenha um ponto de interesse numa peça que já existia. “Não posso ser o autor deste monumento porque já existia um jazigo, que a Câmara Municipal de Lisboa pôs à disposição da Casa Pia, que custeou as pequenas obras que se fizeram, como a limpeza e o pagamento ao fundidor, e que assume a sua manutenção para sempre. A escultura é só uma forma de o distinguir, porque o jazigo tinha lá em cima uma cruz que teve de sair.”

Mário Cesariny costumava dizer que o que restava do sagrado era a morte e que mesmo isso estava a desaparecer. Todos os que conheceram o artista e poeta sabem bem, como ele, na sua luta pela liberdade, pela poesia e pelo amor, era distante de tudo o que é “oficial, convencional e vazio”, afirmou José Manuel dos Santos na sua evocação.

Recusava homenagens que “lhe pareciam fúteis”,  lembrou também a deputada Teresa Caeiro, sobrinha-neta de Cesariny, a quem o tio-avô ensinou o que é “a inteligência no seu estado puro”, o que é o “talento absoluto, não deslumbrado” e o que é ter-se um “imenso sentido de humor, tão rápido quanto mortífero”.

É preciso não esquecer, como disse José Manuel dos Santos, que “estar com Cesariny era partir numa nave espacial e olhar cá para baixo com os olhos muito abertos” e que o seu riso, era um riso “livre, enorme e desassombrado”. Um riso de “raiva e de protesto, por onde passava o riso antigo de Rabelais e o riso moderno de  Artaud”. E se aquele que foi um dos maiores artistas surrealistas portugueses estivesse a assistir àquela cerimónia, talvez se risse ou talvez tivesse gostado de estar ali, tal como o imaginou Teresa Caeiro, com o seu sorriso irreverente a dizer-lhes: ‘Ai, mas o que é que vocês me estão a fazer?’”

O que os amigos de Mário Cesariny estão a fazer vai saber-se brevemente. No entanto, já se sabe que estão a ser preparadas várias iniciativas, a acontecer durante o próximo ano, como reedições de obras e a continuação do trabalho que está a ser feito na edição crítica, bem como exposições (uma delas poderá acontecer no Centro Cultural de Belém), a possibilidade de lançamento de uma cátedra com o seu nome na Universidade das Ilhas Baleares (onde lecciona o académico Perfecto Cuadrado, grande especialista do surrealismo), e até a possibilidade de se dar o seu nome a um dos largos de Lisboa.

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