A esquerda ainda vai a tempo? Dificilmente

As probabilidades de um Presidente socialista em França continuam a ser bastante baixas.

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1. Aquilo que já era esperado há muito aconteceu. François Hollande sai de cena, com um balanço muito negativo. Manuel Valls, o seu primeiro-ministro, não esperava outra coisa. Anunciou na segunda-feira a sua candidatura, tentando fazer esquecer o seu perfil polémico a que muitos no seu partido chamam de “social-liberal” ou de “social-democrata”, uma designação que ainda hoje não é bem-vista na esquerda francesa. Acusam-no de ter “traído” François Hollande. Ele apenas pressionou o Presidente, cuja impopularidade é inédita, para que desistisse a tempo de lhe permitir anunciar a sua candidatura. Não é consensual no Partido Socialista e tem já muito pouco tempo para tentar vencer as “primárias”, a 22 e 29 de Janeiro. Quando anunciou a sua candidatura, disse que queria, acima de tudo, “reconciliar” a esquerda. François Fillon, primeiro-ministro de Nicolas Sarkozy, teve quase cinco anos para se distanciar da imagem do anterior Presidente. Valls tem pouco mais de um mês. Declarou que a sua candidatura tem por objectivo impedir outro choque idêntico ao de 2002, quando Lionel Jospin (primeiro-ministro socialista de 1997 a 2002) perdeu para Jean-Marie Le Pen (o pai) a passagem à segunda volta para enfrentar a candidatura de Jacques Chirac ao segundo mandato. As probabilidades de um Presidente socialista continuam a ser bastante baixas.

2. Comecemos pelo discurso. Faltou-lhe ainda um fio condutor para conseguir reconciliar a esquerda. As suas ideias perseguem-no e os seus adversários tratam de as recordar. Quis acabar com as 35 horas, impostas por Martine Aubry, quando era ministra de Jospin. Sempre se apresentou como um “social-democrata”, representante de uma esquerda que vê como “pragmática, reformadora e republicana”. Em 2014, já primeiro-ministro, disse ao Nouvel Obs que a “esquerda tinha de se reinventar ou morrer”. “A única questão que é válida é como orientar a modernidade para acelerar a emancipação dos indivíduos. É esse o meu ideal”. Desta vez, deixou a sua marca “liberal” para outras circunstâncias. Escolheu para tema central da sua mensagem devolver à França o papel a que tem direito na Europa e no mundo. Como? Disparando em todas as direcções. “Quero uma França independente, inflexível nos seus valores, perante a China de Xi Jinping, a Rússia de Vladimir Putin, a América de Donald Trump e a Turquia de Erdogan”. Confuso? Bastante. A eleição de Trump facilita-lhe um discurso anti-americano que os franceses sempre apreciaram e que Fillon também retomou. Putin permite-lhe uma clara demarcação do candidato dos Republicanos, de Marine ou, mesmo, de Jean-Luc Mélenchon (esquerda radical). A China quer dizer uma política mais proteccionista, encontrando formas de proteger as pessoas da globalização. “Quero que as classes populares reencontrem a sua dignidade (…) e não se vejam condenadas pela mundialização”. O Presidente turco é mais difícil de perceber neste quarteto, mas será uma mensagem indirecta à imigração islâmica e às comunidades francesas de fé muçulmana que estão na base da propaganda de Le Pen. Valls professa a linha dura do laicismo francês contra os sinais religiosos no espaço público, incluindo a burqa e o burquini. Vai ter de falar mais sobre a Europa. Mas sabe que o tema continua a dividir o seu partido, desde o referendo que chumbou, em 2005, o Tratado Constitucional europeu. Deixou de lado as questões mais quentes sobre as regras do euro e a austeridade imposta por Berlim. Enviou alguns recados indirectos ao seu anterior ministro da Economia, o jovem Emmanuel Macron, que saiu do Governo em finais de Agosto para anunciar a sua própria candidatura, ocupando um espaço político onde Valls costumava reinar. Macron quer aproveitar o espaço ao centro que a candidatura de Fillon abriu. Valls, o “traidor”, também foi “traído”.

3. Vai ganhar as primárias? Ninguém sabe. “Os “elefantes” (como é chamada a velha guarda) ainda não tomaram posição, a não ser a ala esquerda de Martine Aubry. Tem o apoio de alguns dos seus ministros mais reputados: Michel Sapin, das Finanças, ou o ministro da Defesa, Jean-Yves Le Drian. Mas ainda é uma candidatura solitária à espera de saber se o PS vai preferir a moderação ou a radicalização. “Ele continua muito minoritário dentro do partido”, escreve o Nouvel Obs. A vitória da facção ainda mais à esquerda, corporizada por Arnaud Montebourg, ainda não está totalmente posta de parte. A tentação de uma viragem à esquerda, como aconteceu no Labour britânico, continua a ser uma possibilidade. O risco é o mesmo: afastar por muitos e bons anos a esquerda do poder.

4. François Hollande fez-se eleger com um programa de esquerda, prometendo carregar os ricos de impostos. Em 2014, anunciou uma viragem de direcção no sentido de facilitar a vida às empresas, enquanto ia adiando o cumprimento das metas do défice exigidas pela zona euro. Gastou o seu último cartucho para provar que estava a falar a sério, escolhendo para liderar o Governo o rosto que simbolizava a versão socialista mais aberta às reformas económicas e sociais. As suas hesitações foram “matando” à nascença algumas das reformas mais radicais de Valls, acabando por não agradar nem a patrões nem a sindicatos. Contribuiu largamente para dividir a esquerda e perdeu a confiança dos franceses. Valls é de outra geração. Quis cortar com o passado. Arranjou inimigos. Nada garante que a sua aposta acabe por vencer.

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