Com a queda de Renzi a Itália regressa ao “ano zero”

Renzi não percebeu, tal como David Cameron, que um ano depois da promessa do referendo o clima político-social pode ter mudado radicalmente.

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Matteo Renzi somou vitórias sobre vitórias para perder a partida decisiva. São impressionantes os números da sua derrota no referendo: 19 pontos percentuais. Era, até há um ano, o político mais popular de Itália, com taxas de aprovação superiores a 60%. Foi ele quem escolheu o terreno do referendo para fazer passar “a reforma das reformas” e personalizou a consulta para obter uma investidura popular. Queria demolir o anquilosado sistema político italiano.

No domingo, assumiu pessoalmente a derrota, sem bodes expiatórios. Mas disse aos colaboradores: “Não acreditava que [os outros dirigentes partidários] me odiassem tanto.” Foi vencido por uma coligação de “todos contra Renzi”. O seu projecto era uma ameaça para quase todos os adversários.

A perplexidade que este desfecho possa suscitar foi ontem sublinhada no La Repubblica. “Jamais um governo tinha feito tantas reformas em tão pouco tempo, pouco mais de mil dias. Jamais um primeiro-ministro, desde 1948, tinha feito o seu partido superar o tecto dos 40% [nas eleições europeias de 2014]. Mas a categórica derrota de Matteo Renzi no referendo não é explicável sem o seu terceiro termo: jamais um homem político conseguiu fazer nascer tão rapidamente um sentimento transversal, profundo e multicolor, da extrema-direita à extrema-esquerda, um sentimento que acabou por partir em dois o seu próprio partido: o anti-renzismo.”

Renzi emergiu como figura nacional em 2010 — era então presidente de Florença — ao propor “mandar para a sucata” uma geração inteira dos dirigentes do Partido Democrático (PD), se a esquerda se quisesse livrar de Berlusconi. Exigia o rejuvenescimento da política. Conquistou a liderança do PD nas primárias de Dezembro de 2013 e, dois meses depois, assumiu pessoalmente a chefia do Governo, sem ter vencido eleições.

Erros

O activismo do jovem primeiro--ministro agradou aos italianos. Cultivava a velocidade e fazia dos obstáculos oportunidades. Personalizou a política e o partido. Bateu-se por um executivo forte, daí a necessidade de pôr termo ao bicameralismo perfeito e mudar as competências do Senado.

Cometeu entretanto um duplo erro. Ao ligar ao referendo o seu destino político, incentivou a união dos adversários. Ao elaborar uma lei eleitoral (Italicum) destinada a garantir ao partido vencedor uma maioria absoluta — produto de uma negociação com Berlusconi —, criou uma armadilha para si mesmo. A decadência de Berlusconi e a ascensão do Movimento 5 Estrelas, de Beppe Grillo, ao papel de segundo partido mudaram o tabuleiro. Chegou-se ao inimaginável cenário do “todos contra Renzi”, o que permitiria a Grillo bater o PD numa segunda volta das legislativas. Seria uma oportunidade dourada, e única, para se desfazerem do primeiro-ministro, num clima de caos.

Teria Renzi outro meio de realizar o seu projecto? Ou desistia, pela falta da maioria dos dois terços no Senado, após a ruptura do acordo por parte de Berlusconi, ou restava o referendo. Na altura, a revisão constitucional tinha a aprovação da grande maioria dos italianos. Mas não percebeu, tal como David Cameron, que um ano depois da promessa do referendo o clima político-social pode ter mudado radicalmente.

Renzi não foi derrotado por um projecto alternativo. O referendo suscitou uma coligação tipo “albergue espanhol”: a minoria de esquerda do PD, a extrema-esquerda, intelectuais e juristas que denunciavam a reforma como antecâmara da “ditadura”, a esquerda sindical furiosa com a nova lei laboral, a Força Itália, de Berlusconi, e a Liga Norte, de Matteo Salvini. E, como ponta-de-lança, os Cinco Estrelas. Renzi e as reformas foram derrotados pelo velho mas refinado establishment político.
Maurizio Molinari, director do La Stampa, chama a atenção para a outra face da moeda, o voto de protesto contra o Governo, já patente nas últimas eleições locais. “Votaram ‘não’  as famílias das classes médias descontentes, sem esperança de prosperidade e bem-estar para filhos e netos. Votaram os jovens sem trabalho, votaram os operários que se sentem ameaçados pelos imigrantes ou os empregados a quem o salário não chega.” O país permaneceu insensível não só às promessas, como às próprias realizações do Governo. Compara este voto com o que se passou no “Brexit” ou na eleição de Donald Trump.

O Il Sole 24 Ore acrescenta um elemento psicológico. “Não foi uma derrota de Renzi, mas a recusa de uma reforma mal conduzida. Renzi não devia fazer chantagem sobre os italianos. Inovar é bom, mas é outra coisa.”

Efeitos

Uma derrota tangencial deixaria a Renzi larga margem de manobra. Um desastre desta dimensão não apenas força a demissão do primeiro-ministro, como debilita a sua posição dentro do partido. Os seus adversários no PD jogam a sua sobrevivência política e a possibilidade de serem candidatos nas eleições de 2018. A guerra no PD não vai ser bonita de se ver.

Não haverá eleições sem nova lei eleitoral — a haver, votar-se-ia para o Senado com uma e para os deputados com outra. A política geral está sob efeito de uma tempestade perfeita. A “frente do não” não existe politicamente, não tem líder, nem coerência e depressa as suas várias componentes vão entrar em guerra entre si. Que reformas poderão ainda ser feitas?
Conclui na L’Espresso o jornalista Marco Damilano: “Devia ser, nos planos de Renzi, o dia de nascença da Terceira República, com um referendo de estilo gaullista. Chegou, ao contrário, o ano zero.”

jafernandes@publico.pt

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