A União Europeia já não tem mais do que um fraco Renzi

O referendo derrotou a ideia de um governo poderoso, como derrotou Renzi, e como derrota a imposição europeia do desmantelamento das leis nacionais que contrariem os ditames da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu

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Tony Gentile/ Reuters

O resultado do referendo de Itália ontem, com uma claríssima derrota do centrão da austeridade não é o fim da União Europeia. Embora essa ideia tenha sido lançada, tanto pela campanha pelo “Sim” à reforma constitucional como pela imprensa europeia em geral, a verdade é que hoje o ocaso da União Europeia não precisa de um grande evento ou de uma grande derrota. Precisa apenas de tempo.

Que o governo liberal de Matteo Renzi tenha usado a continuidade da UE e do Euro como chantagem e que tenha sido olimpicamente derrotado vale apenas para ver que o fim do “projecto europeu” não representa para os povos europeus mais do que uma muito distante ameaça. Sobre os termos próprios do referendo, representavam um desarmar do povo italiano de ferramentas democráticas, num sistema que certamente tem redundâncias mas que, se o “Italicum” (nome da lei que mudaria o processo eleitoral e as câmaras representativas – Parlamento e Senado) fosse aprovado, tornaria um partido com 40% dos votos num partido com 54%, atribuindo automaticamente 340 lugares eleitos de um universo de 630 e garantindo maiorias absolutas (se nenhum partido obtivesse os 40% haveria uma segunda volta entre os dois mais votados). Além disso o Senado seria desmantelado, assim como os poderes das regiões e autarquias. Um sistema que foi montado para evitar a ascensão de partidos fascistas como o de Mussolini seria desmantelado exactamente neste momento, em que no país há uma Lega Nord de extrema-direita e com partidos neonazis por toda a Europa, e criaria governos todos-poderosos e sem qualquer contrabalanço (o próprio Presidente da República é eleito por 3/5 dos deputados). Mas o resultado do referendo é também uma rejeição absoluta das políticas europeias de Renzi, a precariedade promovida pelo infame Jobs Act, os galopantes gastos em armas e militares, a perfuração por petróleo e gás offshore no mar, e a tentativa de impedir qualquer oposição às ordens europeias de ter legalidade. O desmantelamento do Senado e dos poderes locais foi justamente percebido como uma agressão à democracia em Itália, em que todas as decisões sobre energia, infraestruturas e herança cultural ficariam, sob um “claúsula de supremacia”, na alçada exclusiva do Parlamento em Roma.

Ao colocar a sua permanência à frente do governo dependente da vitória do Sim, Matteo Renzi fez deste referendo uma avaliação da sua política governativa desde que tomou o poder, através de um golpe palaciano em Fevereiro de 2014. É preciso não esquecer que Matteo Renzi nunca foi eleito primeiro-ministro, mas sim que decapitou a liderança de Enrico Letta dentro do Partido Democrático, substituindo um primeiro-ministro a partir de dentro do aparelho do partido sem qualquer escrutínio popular. Isso para a União Europeia era irrelevante, já que a mesma tinha pouco tempo antes colocado Mario Monti, da Goldman Sachs, a comandar um governo austeritário em Itália, sem sequer haver eleições. A avaliação que o povo italiano fez do governo de austeridade de Renzi foi claríssima: não passou. Os 1015 dias de Renzi à frente do governo italiano foram um frenesim de reformas, cortes, resgates: do Jobs Act, promotor da precariedade, que juntou milhões em protesto, ao Unlock Italy, uma via verde para os projectos industriais sem avaliação de impacto ambiental ou social, passando pela reforma da Educação, a chamada Good School e, obviamente, os resgates à banca privada italiana em colapso. Mesmo medidas progressistas como as mudanças nas uniões civis e nos divórcios ganharam para Renzi apenas mais inimigos: os católicos (sendo Renzi um católico assumido). O referendo derrotou a ideia de um governo poderoso, como derrotou Renzi, e como derrota a imposição europeia do desmantelamento das leis nacionais que contrariem os ditames da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu. É preciso nunca esquecer dos idos de 2012, quando era dito claramente aos países europeus, que precisavam “abdicar da sua soberania”. O melhor que a União Europeia tem hoje para oferecer é um Matteo Renzi, promotor envergonhado da austeridade, jovem para parecer que o que faz não é destruir as populações e os avanços sociais, e criando a falsa dicotomia de que manter a democracia nacional é destruir a Europa, quando é a própria União Europeia que se encarrega de fazê-lo com as suas políticas do dia-a-dia.

Precisamos sempre de recordar quem é o ministro das Finanças europeu oficial, Jeroen Dijsselbloem (outro politico de “centro-esquerda” como Renzi), profeta da austeridade infinita, e quem é o ministro das Finanças europeu real, Wolfgang Schauble, que aproveitou este momento de estabilidade da Europa para dizer, hoje mesmo, que ou a Grécia apresenta mais medidas de austeridade ou sai do euro. Não têm mesmo mais nada para oferecer.

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