O ano da mortalidade dos líderes europeus

Londres, Paris e Roma sofreram terramotos políticos no último ano que decapitaram as suas lideranças de uma forma inédita. Merkel é agora a última dos europeístas num grande país da UE.

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Obama está de saída, Hollande não se recandidata e tanto Cameron como Renzi sofreram derrotas que os levaram a demitir-se. Só Merkel resiste JOHN MACDOUGALL/AFP

David Cameron, François Hollande e, agora, Matteo Renzi. No último ano, os líderes dos governos de alguns dos principais países da União Europeia tombaram perante uma combinação destrutiva de eurocepticismo, insegurança, desemprego e populismo. O quadro fica completo com a incapacidade de cada um deles em interpretar de forma correcta as preocupações do seu eleitorado e de terem arriscado a sua sorte política. A chanceler alemã, Angela Merkel, é a única chefe de Governo de um grande país europeu com um perfil europeísta que se mantém firme no seu posto. No próximo ano enfrenta eleições federais que, à partida, vencerá, apesar de também ela ser ameaçada por uma onda semelhante à que varreu os seus antigos colegas das cimeiras do Conselho Europeu.

David Cameron

O trunfo que assegurou ao líder dos conservadores uma inesperada maioria absoluta – quando a generalidade das sondagens apontava, na melhor das hipóteses, para uma maioria relativa – nas eleições gerais de 2015 foi o mesmo que o viria a expulsar do número 10 de Downing Street, pouco mais de um ano depois. Pressionado pelo crescimento da popularidade do Partido da Independência do Reino Unido (UKIP) e pela pressão das alas tradicionalmente eurocépticas do seu próprio partido, David Cameron prometeu consultar os britânicos sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia, caso continuasse a governar depois de 2015. Assim aconteceu e Cameron, que nunca foi um grande entusiasta pelo projecto europeu, marcou o referendo e, depois de meses a negociar “uma nova relação com a União Europeia” (sem nunca excluir que, em caso de fracasso iria fazer campanha pela saída) anunciou em Fevereiro a sua oposição ao “Brexit”. A crença era a de que, à semelhança do referendo de 1975, o eleitorado iria preferir a continuidade no bloco comunitário em vez do mergulho no desconhecido que seria a saída. Mas 2016 não é 1975. A campanha dos partidários do “Brexit” foi impiedosa e girou em torno da imigração, captando os ressentimentos da classe operária que se sentiram postos de parte pelas políticas liberais das últimas duas décadas e o descontentamento de grande parte da população que vive fora das grandes metrópoles em relação à entrada de imigrantes dos Estados-membro do Leste europeu. Pelo contrário, a campanha pela permanência nunca conseguiu uma defesa entusiástica da UE, optando por centrar-se no perigo que a saída representava para a economia britânica, um argumento que não cativou a maioria dos eleitores, apesar do apoio das grandes empresas e da larga maioria dos deputados.

François Hollande

Foi com o semblante carregado e um discurso seco e pouco emotivo que François Hollande anunciou, na semana passada, a decisão inédita de não se apresentar às eleições presidenciais do próximo ano. Eleito em 2012 com a promessa de uma governação diferente – um afastamento da austeridade orçamental exigida Berlim –, Hollande acabou por abandonar as suas promessas eleitorais, inclinando-se para o cumprimento das regras do euro. Os sindicatos usaram toda a sua força de contestação para contestar esta nova fase, encarnada pelo novo Governo de Manuel Valls, vindo da direita do PS, a última das quais foi a revisão do Código do Trabalho que veio flexibilizar os despedimentos e que levou a protestos maciços em todo o país. Com Hollande no Eliseu, a extrema-direita, com Marine Le Pen ao leme, viveu o melhor período eleitoral das últimas décadas: dominou nas eleições europeias, conquistou vários municípios, entrou na Assembleia Nacional e no Senado e alimenta hoje genuínas esperanças de alcançar a presidência. Os atentados terroristas em solo francês dos últimos dois anos mergulharam o país num permanente estado de ansiedade, ao qual Hollande respondeu com propostas duras, algumas inspiradas pela extrema-direita, como a retirada da nacionalidade a suspeitos de terrorismo. A medida caiu por terra – abrindo caminho a críticas da direita – e abriu nova crise no Governo, com a demissão da ministra da Justiça. O episódio é um reflexo do mandato do Presidente que sai com o índice de popularidade mais baixo de sempre.

Matteo Renzi

A demissão de Renzi após a derrota da reforma constitucional no referendo de domingo atira Itália para um lugar conhecido: a instabilidade política. Ganhou fama de reformista à frente da câmara municipal de Florença e tomou de assalto o Partido Democrático, derrubando, em Fevereiro de 2014, Enrico Letta e assumindo, sem eleições, a chefia do Governo. Vencido o partido e o país, Renzi propunha-se, a partir de Roma, promover um reequilíbrio em Bruxelas. A vitória nas eleições europeias de Maio de 2014 fortaleceu a posição de Renzi como o líder político mais relevante do centro-esquerda europeu. O objectivo era opor ao dogma da austeridade seguido por Berlim e pelos países do norte do continente uma abordagem mais “humana” sem, porém, esquecer os pilares do Tratado Orçamental. Em pouco mais de dois anos, o seu Governo promoveu mais reformas do que qualquer outro nas últimas décadas. Foi reformulada a lei laboral, abolidos inúmeros impostos, aprovado o regime da união civil para casais do mesmo sexo e reformado o sistema eleitoral para favorecer o estabelecimento de maiorias no Parlamento. Ao mexer de forma tão profunda com tantos sectores diferentes e tão rapidamente, Renzi concentrou contra si uma coligação negativa difícil de ultrapassar, que inclui os populistas do 5 Estrelas, a direita e a extrema-direita, bem como algumas franjas da esquerda. A derradeira reforma, aquela que via como vital para a sua visão de Itália, acabou por ditar o fim de mais um governo italiano.

Angela Merkel

Poucos dias depois da vitória de Donald Trump nas eleições norte-americanas, o New York Times declarava Merkel a “última defensora do Ocidente liberal”. À medida que as eleições à sua volta se vão desenrolando, o epíteto parece ter cada vez mais força. Mas também na Alemanha se acumulam os sinais de que uma vaga semelhante à que atingiu os principais líderes europeus se está a construir. A grande ameaça vem do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD), que surgiu em 2013 como uma formação crítica da moeda única europeia – com o argumento de que os contribuintes alemães não podiam suportar as dívidas dos países do Sul – e que, entretanto, se radicalizou, adoptando o discurso da extrema-direita xenófoba e anti-imigração. No seu congresso, em Maio, o partido aprovou um manifesto abertamente anti-islão. A resposta de Merkel ao populismo xenófobo veio em contraciclo. Em Setembro do ano passado, quando milhares de refugiados se concentravam nas fronteiras externas da UE, a chanceler ordenou a abertura de fronteiras e lançou um apelo ao resto do continente. A política de portas abertas causou uma queda na popularidade de Merkel, mas o cenário mais provável nas eleições federais do próximo ano continua a ser o da sua reeleição para um quarto mandato. Hoje, a chanceler é vista fora das fronteiras do seu país como o último baluarte da defesa da União Europeia contra a vaga populista. 

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