A batalha do jornalista com stress pós-traumático

Pensei que me podia distanciar das histórias sobre as quais escrevia. O atentado na discoteca de Bali, na Indonésia, a morte dos meus colegas iraquianos, cujos caixões carreguei ao ombro no funeral em 2007, a devastação do tsunami<\i>.

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Dean Yates no Iraque em 2003 Reuters

Quando o psiquiatra me diagnosticou stress pós-traumático (SPT) no final da nossa primeira sessão em Março, tive de reconhecer que não estava bem. Os flashbacks, a ansiedade, o entorpecimento emocional e a falta de sono preocupava há muito a minha mulher, Mary. Minimizei os sintomas, neguei que tinha um problema. Cinco meses depois, estava no psiquiatra.

Cobri algumas grandes histórias como jornalista da Reuters. As bombas na discoteca de Bali em 2002, o tsunami na província indonésia de Aceh em 2004, três missões no Iraque em 2003-04 e depois fui chefe da delegação em Bagdad em 2008-09. Entre 2010 e 2012, instalado em Singapura, escrevi diariamente sobre os grandes temas asiáticos.

Depois, ao fim de 20 anos a escrever sobre a Ásia e o Médio Oriente, chegou o momento de assentar. No início de 2013, levei a família para a cidade de Evandale, na Tasmânia (Austrália), que tem uma população de mil pessoas, e passei a editar os textos da Reuters a partir de casa.

Mas, em vez de conseguir descomprimir na magnífica ilha australiana onde a minha mulher nasceu, desintegrei-me.

Numa carta que lhe foi penoso escrever, Mary — ex-jornalista — desfiou todas as suas preocupações ao psiquiatra antes da minha primeira sessão. “Vir para a Tasmânia, há três anos, foi uma mudança de paradigma para Dean, que passou a estar muito mais tempo com a família. Mas rapidamente comecei a notar mudanças — hipersensibilidade ao barulho, irritabilidade, impaciência e uma atmosfera que parecia de infelicidade abateu-se sobre a nossa casa”, escreveu Mary. “Comecei a pensar se não teria SPT. Ele diz que há imagens que vão ficar com ele para o resto da vida.”

Dezenas de imagens, ruídos e cheiros estão de facto carimbados na minha memória. A mão que quase pisei nos destroços da discoteca Sari em Bali. Os mais de 150 corpos inchados que contei numa mesquita de Banda depois do tsunami. O lamento que inundou a delegação de Bagdad na manhã de 12 de Julho de 2007, quando chegou a notícia de que o fotógrafo Namir Noor-Eldeen, de 22 anos, e o motorista Saeed Chmagh, de 40, tinham sido mortos num ataque de um helicóptero Apache americano.

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O stress pós-traumático ocorre devido à exposição a um acontecimento traumático ou à acumulação de experiências traumáticas. O termo é relativamente novo. Surgiu num documento charneira da psiquiatria moderna, o U.S. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, de 1980. E surgiu depois de uma pressão de anos por parte da organização Veteranos do Vietname Contra a Guerra e de psiquiatras que trataram soldados com problemas resultantes das suas comissões no Vietname.

Os traumas psicológicos existem há muito mais tempo, é claro. O termo shell shock (choque de rebentamento) foi usado para mencionar os soldados que se foram abaixo nas trincheiras da I Guerra Mundial.

O SPT não afecta apenas soldados. Polícias e socorristas correm o mesmo risco. Assim como os civis apanhados em zonas de guerra ou de desastres naturais e as vítimas de abusos sexuais e de desastres de automóvel.

A maior parte dos jornalistas são resilientes, apesar de estarem repetidamente expostos, por causa do seu trabalho, a acontecimentos traumáticos, diz o site do Dart Center for Journalism and Trauma, um projecto da Faculdade de Jornalismo da Universidade de Colombia, em Nova Iorque. Mas refere que uma minoria significativa corre o risco de desenvolver problemas psicológicos duradouros, incluindo SPT, depressão e abuso de drogas.

Nunca pensei ficar com SPT. Era calmo, racional e seguro. Gostava de estar à frente de grandes equipas editoriais. Pensava que conseguia distanciar-me das situações difíceis quando fosse preciso.

Porém, no ano passado, houve dias em que não consegui sair da cama. Sentava-me no escritório, tentando trabalhar, e mal conseguia levantar a cabeça. Quando ficava stressado, viajava para o passado, para a delegação de Bagdad, e era como se nunca tivesse de lá saído. Batia com os punhos na secretária, gritava para as paredes.

Estava tão sensível ao barulho que os meus filhos adolescentes paralisavam quando deixavam cair alguma coisa. A Mary não podia aspirar se eu estivesse por perto. Depois de ler sobre SPT e de ter falado com alguns especialistas sobre a doença, ela disse-me várias vezes que eu precisava de ajuda.

Mas quando cedi e consultei um psicólogo, em meados de 2015, ele descartou o SPT, disse que eu estava com uma crise de identidade porque já não tinha um trabalho importante e me tinha mudado para uma terra na província onde ninguém me conhecia. Não tenho SPT, disse a Mary.

Meses depois, a minha irritabilidade, o meu entorpecimento e a minha cólera atingiram um ponto tal que cedi: consultei finalmente um psiquiatra que me diagnosticou SPT — além de que, em Março, o meu casamento estava por um fio.

Sem hesitar, os meus editores deram-me uma licença de três meses. Comecei a tomar antidepressivos. Nas semanas após o diagnóstico, fatigava-me com frequência. No início de Maio, adiei o meu regresso ao trabalho para Junho. Entre Maio e Junho, fiz um curso de concentração, na esperança de que a meditação me ajudasse a lidar com o stress e a ansiedade.

A melhor terapia, pensava eu, era dar caminhadas pelo bosque.

Na floresta tropical da Tasmânia, encontrei o que procurava — paz. Adorava percorrer os trilhos onde podia encontrar árvores antigas, sentar-me junto a rios e olhar para a bruma nas montanhas. Esquecia-me da minha mente perturbada e simplesmente respirava a floresta tropical. Comecei a devorar livros sobre a vida selvagem da Tasmânia e sobre a história da bravia Costa Oeste.

Em sintonia com o comportamento de risco associado ao SPT, comecei a planear caminhadas de vários dias, sozinho, em pleno Inverno. Preocupado, o meu sogro, um experiente caminhante, deu-me o seu aparelho localizador. Acabei por seguir o seu conselho e optei por caminhadas menos perigosas.

Quando não estava a fazer caminhadas, ficava agitado, ansioso e a desejar a solidão. No início de Junho, quando Mary me disse que ela e as crianças andavam em pezinhos de lã por causa do meu estado mental, enfureci-me, parecia um animal enjaulado. Mary saiu da sala a pensar que, se me desafiasse, eu lhe batia.

No dia 27 de Junho, escrevi no meu diário: “Estou a um passo de uma ‘ledakan’.” Usei a palavra indonésia para “explosão”, por recear que Mary se passasse se visse o diário.

No dia seguinte, enviei um email aos meus editores a dizer que não podia continuar a editar textos porque era demasiado stressante. O meu psiquiatra concordou.

Nevoeiro mental

Em Julho, piorei. Estava profundamente deprimido. Sentia-me a viver num nevoeiro mental. Os pesadelos pioraram. Nos sonhos mais assustadores, corria pelas ruas de Bagdad perseguido por rebeldes. Mary disse que, na maior parte das noites, os meus pés se moviam, como se estivesse a correr. Para dormir, tomava paracetamol e comprimidos de codeína. Comecei a beber muito. Havia dias em que ficava na cama.

Na semana antes do novo aniversário da morte de Namir e Saeed, comecei a pensar neles e nas minhas decisões como chefe da delegação. Passei a pente fino os emails da época, que guardei, perguntando-me se fiz tudo o que podia para investigar as circunstâncias das suas mortes. Em especial, vi e revi o vídeo militar classificado, divulgado pelo WikiLeaks em 2010, três anos depois do ataque, que mostra os disparos do helicóptero que os matou e a mais dez pessoas.

O ataque ocorreu na manhã de 12 de Julho de 2007. Estava sentado no escritório, para escrever a principal história do dia e para gerir a comunicação com a sede em Londres. De repente, começou um enorme barulho na entrada do edifício de dois andares da nossa redacção. Percebi imediatamente que alguma coisa terrível tinha acontecido. Ainda me lembro do rosto angustiado do colega que entrou pela porta para dar a notícia. Outro colega traduziu: Namir e Saeed foram mortos.

Tinham ido ao leste de Bagdad depois de terem ouvido que tinha havido um ataque americano a um edifício, na madrugada. Ao caminharem pela rua abaixo, ficaram envolvidos num grupo de uma dúzia ou mais pessoas, como mostraram depois as imagens do WikiLeaks, e algumas delas pareciam estar armadas. Um helicóptero Apache americano abriu fogo com um canhão de 30mm, aparentemente confundindo Namir e Saeed com combatentes.

Namir foi morto no primeiro assalto, mostram as imagens; Saeed foi atingido no segundo. A troça dos pilotos do helicóptero é chocante. “Yeah, vejam estes cabrões mortos”, ouve-se um piloto dizer. “Nice”, respondem os camaradas.

Por fora, fiquei calmo, concentrando-me em perceber o que tinha motivado o ataque, lidando com os militares americanos e consolando o pessoal. Agravando o luto da redacção, um tradutor iraquiano a trabalhar para a Reuters tinha sido morto em Bagdad por homens armados um dia antes de Namir e Saeed. Mas só soubemos alguns dias depois, quando ele deixou de aparecer para trabalhar. A família do tradutor pediu-me para não revelar o seu nome.

Por dentro, estava a desfazer-me.

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Alguns dias depois de Namir e Saeed morrerem, quase tive um esgotamento nervoso na redacção. Enquanto chorava, pensava que o melhor era demitir-me. Era demasiado stress. Era preciso alguém mais forte para fazer o trabalho. Mas continuei.

Estava de férias na Tasmânia quando o vídeo do WikiLeaks foi divulgado, a 5 de Abril de 2010, e senti-me um cobarde por ter deixado nas mãos de outras pessoas da Reuters uma história tão importante, apesar de ter sentido que conhecia a situação melhor do que qualquer outra pessoa. O vídeo, intitulado “Assassínio colateral”, foi visto milhões de vezes.

Com tudo isto a consumir-me por mais de seis anos, pedi a colegas com que trabalhei em Bagdad, iraquianos e estrangeiros, que me dissessem o que pensavam. Todos disseram que fiz o que pude. Mas a culpa e a vergonha não desapareceram.

No final de Julho, disse a Mary que estava desesperado para encontrar a paz, fosse de que forma fosse. Ela disse-me que precisava de tratamento num hospital psiquátrico e urgentemente. “Bateste no fundo.”

Duas semanas depois, estava junto à porta de vidro da Ala 17, a zona de internamento para o SPT do Hospital Heidelberg em Melbourne.

Estava morto de ansiedade. Estava pestes a cruzar a linha, a ser internado numa ala psiquiátrica.

“Vou sair disto mais saudável?”, escrevi antes de embarcar no voo para Melbourne, nessa manhã. “Mais sábio? Mais estável? TENHO DE ESTAR, para o bem da minha família.”

A Ala 17

A zona de admissão era junto da sala de jantar. Homens grisalhos cobertos com tatuagens estavam a jantar. Tinham todos olheiras.

Uma enfermeira mostrou-me o meu quarto e pediu para ver se havia álcool na minha bagagem. Confiscou-me os medicamentos e disse que o pessoal fazia testes aleatórios. Acabou-se o rum com Coca-Cola, pensei.

A Ala 17 tinha 20 doentes e é conhecida por tratar soldados australianos.

Durante as minhas cinco semanas ali, o meu grupo de colegas incluiu veteranos das guerras no Vietname, Iraque, Afeganistão e do conflito em Timor-Leste. Havia homens e mulheres, guardas prisionais, assim como civis que tinham estado à hora errada no lugar errado. Apesar de não ser uma ala fechada, os doentes precisavam de uma autorização para sair. Era autorizadas licenças de fim-de-semana.

No dia seguinte, passei duas horas com o psiquiatra. O que mais me perturbava, disse-lhe, era a culpa pelas mortes de Namir e Saeed. Como chefe da delegação no Iraque, era responsável pela sua segurança, disse. E a vergonha que sentia por não ter dirigido a nossa cobertura do vídeo do WikiLeaks.

Perto do fim da sessão, a psiquiatra disse que eu estava a intelectualizar demasiado o meu trauma e a não expressar as emoções que devia. Ela disse que eu estava a contar os acontecimentos como se falasse de outra pessoa. Traumas anteriores, como as bombas de Bali e o tsunami, tinham atenuado em mim os acontecimentos. Confirmou o diagnóstico de SPT, dizendo que eu sofria de trauma cumulativo e também de depressão.

Mudou os meus antidepressivos e deu-me um medicamento para reduzir os pesadelos. Também me deu Valium e comprimidos para dormir.

De volta ao meu quarto, pensei: como é que lido emocionalmente com isto? Tento chorar?

Durante a minha estadia, uma assistente social começou a acompanhar-me, focando-se na minha apatia emocional e na forma como estava a perturbar o meu casamento e a minha relação com as crianças. Um dos meus objectivos, escrevi na ficha de admissão, era “reencontrar o marido que eu era e o pai que sempre fui”.

Nas sessões de grupo lidava-se com o básico do SPT, a depressão, a ansiedade e a raiva, e com a sobrecarga sensorial. Havia aulas de espiritualidade, de reflexologia, terapia pela arte, até culinária.

Aprendi muito com os outros doentes, alguns deles já tinham estado mais do que uma vez na Ala 17. A couraça caiu rapidamente, apesar de eu ser jornalista. Ali, eu só era um tipo com SPT. Foi importante ouvir outras pessoas dizerem que tinham os mesmos sintomas que eu, que detestavam barulho e multidões e que tinham problemas de relacionamento. Também houve momentos menos pesados.

No meu primeiro fim-de-semana, pensei ver o filme Jason Bourne num cinema próximo. A meio caminho, voltei para trás, por pensar que o cinema podia estar demasiado cheio. Quando, mais tarde, disse isso a um jovem enfermeiro, ele respondeu-me: “Pensava que vias coisas mais profundas.” Os jornalistas também vêem filmes de acção de Hollywood, respondi-lhe.

Li vorazmente sobre o SPT e a guerra e o seu impacte nos soldados, jornalistas e civis. Também escrevi diariamente no diário. À medida que as semanas passavam, sentia progressos.

No dia 28 de Agosto, escrevi uma mensagem para a minha equipa de tratamento: “Fui cobarde quando o WikiLeaks divulgou o vídeo. Estava atordoado. Estava em choque e queria que outra pessoa lidasse com o problema. O problema não era meu, mas devia ter sido meu. E tenho de viver com essa decisão.”

No início de Setembro, uma semana antes de ter alta, a minha psiquiatra pediu-me para pôr por escrito os progressos que tinha feito na Ala 17. A minha lista: honestidade com Mary; comecei a aceitar as minhas acções relativamente à morte de Namir e Saeed; aprendi técnicas para controlar a ansiedade e o stress.

O meu objectivo, quando tive alta, era ter expectativas realistas em relação aos primeiros dias e semanas em casa, verificando os níveis de stress, regressando ao trabalho gradualmente e mantendo-me afastado do álcool. Também começar a fazer psicoterapia semanal.

Foi fantástico ir para casa a 16 de Setembro. Estava determinado a voltar a relacionar-me com a minha família. A Tasmânia era tão calma comparada com Melbourne.

Antes de sair da Ala 17, a minha equipa de tratamento avisou-me que a convalescença iria ser feita de dois passos em frente e um atrás. O dia 23 de Setembro foi um passo atrás.

Estava em Launceston, à espera que Mary me fosse buscar, quando soou o alarme da biblioteca pública. “Emergência. Evacuar”, disse uma voz gravada. Só podem estar a brincar, pensei. Não tinha os headphones comigo. Durou dez minutos. Mantém-te calmo. Respira.

Quando cheguei a casa, a meio da manhã, meti-me na cama. Acabei de ler Dispatches, o livro de memórias de Michael Herr, que cobriu os principais acontecimentos da guerra do Vietname. O que os jornalistas no Vietname fizeram fez-me pensar no meu tempo no Iraque. Eu era um banana comparado com eles.

Arrastei-me para fora da cama para ir buscar a minha filha à escola às duas da tarde. Quando voltei a casa, descobri que o nosso cão tinha deixado um monte de diarreia fedorenta no chão. Comecei a vacilar. Tinha ali outra boa desculpa para voltar para a cama.

Mas chegou o jardineiro para aparar a relva. Não era cortada há seis semanas e estava comprida. Em vez de usar um pequeno corta-relva, usou um aparelho com uma grande lâmina. O barulho lembrou-me o dos pequenos helicópteros de reconhecimento Kiowa, que voavam sobre os telhados de Bagdad. Fiquei com dor de cabeça.

Há uma semana que tinha deixado a Ala 17. A lua-de-mel já tinha acabado, perguntei a mim mesmo. Sabia que estava a voltar a isolar-me. Disse a Mary que estava a ter um “dia de passo atrás”, mas era pior do que isso. Percebi que ela estava preocupada.

No dia seguinte continuava a sentir-me pessimamente, fui a um templo budista meditar. Depois de permanecer sentado na posição do lótus durante uns bons 45 minutos, levantei-me, espantado por sentir que as energias tinham regressado.

Mergulhei na escrita desta história. Escrever tem sido catártico. Nas primeiras semanas na Ala 17, os meus pés não paravam de bater no chão durante a terapia, um reflexo da minha ansiedade. Quando escrevia, ficavam quietas.

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